sábado, 14 de abril de 2012

O sofrimento e suas funções para o homem


Primeiramente, eu gostaria de agradecer a organização do evento pelo convite em participar do X SIMBIDOR e poder contribuir a partir dos meus estudos e pesquisas sobre o sofrimento humano.
De antemão, gostaria de dizer que sou um estudioso da alma humana em seu profundo pesar diante da vida, do desespero e do despedaçamento de não se constituir como um sujeito, uma pessoa ou um indivíduo em sua singularidade e em suas relações diárias.
O sofrimento de que trato, não se dá verdadeiramente no corpo, e sim na alma. Tarefa inglória para um profissional da minha área, que não dispõe de remédios ou de instrumentos cirúrgicos ou ainda de equipamentos de alta tecnologia para aliviar a dor e o sofrimento humano daqueles que me procuram com um padecimento da alma. Meu instrumento de trabalho é a palavra e o tratamento que lhes ofereço é a “cura pela fala”, ou no mais das vezes, o acolhimento do sofrimento humano diante de uma alma que sangra e que pede ajuda em sua agonia.
Não coincidentemente, o título desta mesa se constitui com uma pergunta: “Duas horas sobre sofrimento. Mas... não é muito sofrimento não?”. Não sei o que os meus colegas da mesa pensam sobre a questão e como proposta  de trabalho na tarde de hoje mas, da minha parte, penso que duas horas é uma simples gota no oceano diante da imensidão do sofrimento humano.
No entanto é fundamental que se afirme de imediato que há algo no organismo humano que habita na dor. Sem ela, nossa existência estaria ameaçada posto que a dor e o sofrimento dimensiona nossa vida subjetiva: nascemos pela dor e pelo sofrimento e muitas vezes é através da dor e do sofrimento que chegamos ao fim da vida. Nascemos pela dor e pelo grito, da mãe e do bebê que vem ao mundo em sua condição de recém chegado. Não morremos de dor. Enquanto há dor, há vida e temos forças de combate-la e a continuar vivendo. É pela dor e pelo sofrimento que também dimensionamos nossa relação com o outro e com o ambiente que nos rodeia e faz a interconexão entre o nosso estado fisiológico e psíquico. Assim, podemos afirmar sem reservas que o ser humano necessita da dor e do sofrimento para situa-lo na sua própria história e trajetória de vida.
Do ponto de vista da psicopatologia, é a dor que lança o homem na busca interminável de sentido, colocando-o em movimento. Mas só seres humanos conseguem dar sentido ao que sentem, descrevendo como sendo prazer ou dor, porque são capazes de significar o registro das emoções e dos sentimentos.
A dor e o sofrimento psíquicos são únicos na história de vida de cada ser humano, posto que são sentimentos e sensações de difícil dimensionamento e que escapa à nossa razão. Nesse sentido, a dor física ou psíquica são sempre fenômenos limites para a nossa própria subjetividade.
Os sentimentos de prazer ou dor, por consequência, são os alicerces da nossa mente. Eles são os sentimentos de toda e qualquer emoção, ou dos diversos estados que se relacionam com uma emoção qualquer. É a mais universal das melodias, uma canção que só descansa quando chega o sono, e que se torna um verdadeiro hino quando a alegria nos ocupa, ou se desfaz em lúgubre réquiem quando a tristeza nos invade.
De acordo com o neurocientista António Damásio, os sentimentos são a expressão do florescimento ou do sofrimento humano, na mente e no corpo. Os sentimentos não são uma mera decoração das emoções, qualquer coisa que possamos guardar ou jogar fora. Os sentimentos podem ser, e geralmente são, revelações (itálicos do autor) do estado da vida dentro do organismo. (...) A maior parte dos sentimentos são expressões de uma luta contínua para atingir o equilíbrio, reflexos de todos os minúsculos ajustamentos e correções sem os quais o espetáculo colapsa por inteiro.
Para o autor, compreender a neurobiologia das emoções e dos sentimentos é necessário para que se possam formular princípios, métodos e leis capazes de reduzir o sofrimento humano e engrandecer o florescimento humano, ou seja, para Damásio, a compreensão do sofrimento humano está eminentemente calcada na compreensão da neurobiologia das emoções e dos sentimentos. Isto não quer dizer que, ao compreender a neurobiologia das emoções e dos sentimentos, não possamos representa-los através da palavra.
Ora, mas é preciso que se diga que não são apenas os seres humanos que demonstram compaixão pelo sofrimento de um outro ser. Variadas espécies não humanas também podem demonstrar compaixão pelo sofrimento de seu semelhante, mas não através da representação da palavra.
Não há dúvida de que a mente humana é especial, especial na sua capacidade imensa de sentir prazer e dor e de conhecer a dor e o prazer de outros; especial na sua capacidade de amar e perdoar. Especial na sua memória prodigiosa e na sua capacidade de simbolizar e narrar; especial no seu dom de linguagem com sintaxe; especial na capacidade de compreender o universo e criar novos universos; especial na velocidade e facilidade com que manipula e integra os conhecimentos que permitem a solução de um problema.
Com efeito, para Damásio, dor e prazer são parte de duas genealogias completamente diferentes da regulação da vida. Eles são as alavancas de que o organismo necessita para que as estratégias instintivas e adquiridas atuem com eficácia. (...) Quando muitos indivíduos, em grupos sociais, experienciaram as consequências dolorosas de fenômenos psicológicos, sociais e naturais, tornou-se possível o desenvolvimento de estratégias culturais e intelectuais para fazer face à experiência da dor e para conseguir reduzi-la. (...) Embora nossas reações à dor e ao prazer possam ser alteradas pela educação, constituem um excelente exemplo de fenômenos mentais que dependem da ativação de disposições inatas.
Portanto, o sofrimento proporciona a melhor proteção para a nossa sobrevivência, uma vez que aumenta a probabilidade de darmos atenção aos sinais de dor e agirmos no sentido de evitar sua origem ou corrigir suas consequências.
Por exemplo, os indivíduos afetados por analgesia não adquirem estratégias normais de comportamento. Alguns deles passam o tempo rindo, apesar de a doença os levar a destruir as articulações privadas de dor rompendo ligamentos e articulações, queimaduras graves, ou quebra de algum osso ou dano a órgãos. Não obstante, por conseguirem sentir prazer, podem ser influenciados por sensações positivas. Eles são impedidos de sentirem dor, mas não estão impedidos de sentirem prazer.
Mas também é preciso lembrar que tanto a dor quanto o sofrimento precisam ser distintas: há autores que afirmam que há dores físicas e psíquicas ou somáticas. Da minha parte, não vejo diferença entre uma dor que se constitui como física e outra que se constitui psíquica. De igual modo, não consigo distinguir um sofrimento físico de um sofrimento psíquico, visto que ambos se afetam mutuamente.
A dor psíquica, explica o psicanalista Juan-David Nasio, é uma dor de separação, quando esta significa erradicação e perda de um objeto ao qual estamos intimamente ligados, tal como é o caso de uma pessoa amada, um objeto, um valor ou a integridade de nosso corpo, mas somos nós que construímos esses laços através de processos inconscientes, portanto, uma teia tecida por fios muito sutis que lida as diversas separações dolorosas da nossa existência. Por outro lado, a dor também pode ser de abandono quando o amado toma de volta o amor que nos destinou (tal como minha paciente relata, e desconfio se o seu câncer não seria uma tentativa de resgatar parte da mãe pela via da dor e do sofrimento ou um desejo de sair de cena do mesmo, tal a identificação com sua mãe). Outra possibilidade é a dor da humilhação quando somos feridos em nosso amor próprio, ou por fim, a dor da mutilação, quando perdemos parte do nosso.
Por outro lado, o sofrimento diz respeito a uma perturbação global, psíquica e corporal, provocada por uma excitação violenta, porto que, enquanto a dor física é uma sensação delimitada e definida na materialidade do nosso corpo, o sofrimento ou dor psíquica é uma emoção mal definida e que precisa e apela para uma compreensão. No entanto, no domínio da nossa subjetividade, tanto uma dor centrada na materialidade da carne afetará nosso estado psíquico e emocional, quanto um sofrimento psíquico afetará nosso corpo, pois a dor, seja ela de qual ordem for, é o derradeiro afeto, diz Násio, a última muralha antes da loucura e da morte.
Não há cisão nem física nem metafísica entre a mente ou o cérebro e o corpo. Não há um abismo que separa o psíquico do somático. Não há sujeito no mundo que não altere o seu estado psíquico quando padece de um uma dor orgânica, nem muito menos há um sujeito que não tenha estados alterados na sua fisiologia quando sofre de uma dor psíquica. Tomemos dois outros exemplos: nosso humor, nossa paciência e nossa irritação se tornam uma constante quando sofremos de uma dor de dente, uma apendicite, uma enxaqueca ou um cálculo renal. Consequentemente, nossas taxas hormonais ficam muito debilitadas quando sofremos a perda de um amor ou de um ente querido.
Se a dor altera nosso estado de humor e se torna o último afeto ou a última muralha a ser ultrapassada entre a loucura e a morte, o sofrimento designará uma perturbação global, uma emoção mal definida e, portanto,  psíquica e corporal, provocando uma excitação violenta em nosso organismo.
Tomemos o exemplo das dores reumáticas ou da artrose, ou seja, uma destruição progressiva dos tecidos que compõem a articulação e permite nossa mobilidade. Quando chegamos a certa idade, que pode ser diferente de homens para mulheres, de ocidentais para orientais, de região para região e até mesmo de país para país com suas respectivas condições de vida, a medida que o organismo humano envelhece a artrose se instala em praticamente mais de cem por cento da população mundial com mais de oitenta anos. Assim, a dor lembra constantemente ao psiquismo que o organismo está velho e não suporta certos movimentos outrora praticados na juventude. Se a mente não envelhece, o mesmo não se pode dizer do corpo com suas mazelas fisiológicas que a velhice traz consigo.
A dor pode ser considerada uma das formas mais elementares do organismo humano se defender e quando ela aparece, significa que há algo que precisa de maior atenção e cuidado da nossa parte.
Não é a toa que a International Association for the Study of Pain (Associação Internacional para o Estudo da Dor), define dor como uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a uma lesão tissular existente ou potencial, ou descrita em termos que significam tal lesão. Mas é preciso que se diga que a dor e o sofrimento variam de intensidade de indivíduo para indivíduo.
Por isso, cada um de nós reage a um estímulo doloroso de modo diferente e buscamos o amparo para esse sofrimento das mais diversas formas. Uns, consegue sustentar e manter a dor em níveis mais ou menos moderados, sem recorrer nem a drogas lícitas nem a drogas ilícitas. Outros, fazem uso indistintamente de uma delas, sem grandes arroubos de sentimento de culpa ou julgamento valorativo. Mais alguns podem sucumbir ao seu sofrimento e, além de associar a psicofármacos, buscam na cura pela palavra, uma melhor compreensão do seu sofrimento.
Sabemos que a Psicofarmacologia floresceu principalmente nos anos de 1950 ajudando na construção de outra identidade para a psiquiatria e consequentemente para a medicina. Em seguida, já nos anos 70, o paradigma biológico da psiquiatria se impôs reconstruindo o discurso psicopatológico, fazendo com que a psicanálise perdesse sua hegemonia no campo da psiquiatria, passando a ocupar um lugar secundário. Por fim, o desenvolvimento das neurociências no início dos anos 90 possibilitou a reconstrução da medicina mental, fazendo com que o saber psiquiátrico se transformasse não apenas em uma ciência, mas em uma especialidade médica. Baseada no discurso das neurociências, a psicopatologia questionou a causalidade moral das perturbações do espírito, valendo-se do discurso psiquiátrico.
Os psicofármacos cada vez mais poderosos passaram a regular e controlar cada vez mais a dor e o sofrimento psíquico, possibilitando nos relacionar com a dor mental de outro modo, tais como na medicalização da angústia e da depressão, e porque não mesmo dizer do amor?
A medicalização do humor, das paixões e do sofrimento psíquico e dos seus transtornos passou cada vez mais a fazer parte do novo dia a dia. Ora, em qualquer banca de jornal ou revista semanal, tomamos conhecimento dos mais recentes lançamentos da indústria farmacêutica no alívio de alguns desses males que eu citei. Como disse o psicanalista Joel Birman há pouco mais de uma década, “diante de qualquer angústia, tristeza ou desconforto psíquico, os clínicos passaram a prescrever, sem pestanejar, os psicofármacos mágicos, isto é, ansiolíticos e antidepressivos”.
Ninguém mais em nossos dias aguenta sentir por alguns minutos, dor de dente, dor de ouvido, dor de cabeça ou enxaqueca. Perdemos essa capacidade insofismável de nos relacionar relativamente bem com a dor e o sofrimento físico ou psíquico, do qual eram acostumados nossos avós. Para eles, até a morte de um ente querido ou o fim de um relacionamento baseado no amor ou no romantismo era bem negociável com seu próprio eu do que nos dias atuais.
Tanto a indústria dos psicofármacos quanto das drogas ilegais são facilmente recorridos por pessoas indistintamente à classe social a que pertençam, para alívio imediato de qualquer tipo de sofrimento físico, mas principalmente psíquico.
Da indústria psicofarmacológica ao narcotráfico, o fim é o mesmo: sedação da angústia, eliminação da dor e das excitações excessivas a base de ansiolíticos, extermínio das paixões depressivas com antidepressivos e busca do ideal de estesia psíquica no sujeito e normalização de seus humores intempestivos, seja adulto ou criança, sendo que, estas últimas, antes concebidas como “espertas” ou “criativas” ou até mesmo “inventivas”, passaram por uma nova classificação terna e cognitiva para uma nosologia médica e psiquiátrica, enquadrada em um transtorno conhecimento pela insígnia de 4 letras – TDAH – ou seja, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, para não falar do seu correlato adulto com as psicopatologia da modernidade, quais sejam, as depressões, as síndromes do pânico e a solidão, já que a toxicomania já está ficando fora de moda nos últimos dez anos, não obstante ser ainda um problema de saúde pública em cidades grandes como São Paulo ou Rio de Janeiro.
Sabemos que a experiência do sofrimento e a prática de curar, cuidar ou tratar nem sempre foram do domínio científico, é uma articulação da medicina moderna clínica realizada através de experimentos laboratoriais de Claude Bernard e de François Magendie.
No entanto, a dor expõe um parodoxo de difícil mensuração, posto que a dor e o sofrimento apresentam-se através da palavra pela sua própria natureza de significação, porém, para falar, o homem precisa de silêncio em sua grande dimensão intuitiva e introspectiva.
Winnicott, em seu livro “Natureza Humana”, esboça uma noção de psicopatologia, ou seja, uma discussão sobre saúde e doença a partir de uma tríplice aliança: soma, psique e mente, afirmando que para uma boa saúde física, fez-se necessário uma hereditariedade (nature) e uma criação (nurture) suficientemente bons, ou seja, a saúde da psique é uma questão de maturidade e que saúde intelectual não faz sentido pois dependeria, com efeito, de um bom funcionamento do cérebro.
Para concluir, eu diria, junto com Winnicott, que talvez um pouco de loucura seja necessária para nos fazer retornar ao equilíbrio que tanto necessitamos em termos de saúde, ou dito de outro modo, talvez um pouco de sofrimento seja necessário para nos tornar um pouco mais humano.




Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .

Robert Fliess e os tipos de silêncio



Para Robert Fliess o aparelho da linguagem funciona conforme o modelo das atividades erógenas de uma zona particular tal como os traços de caráter descritos por Karl Abraham. Esse modelo, diz o autor, condicionaria a palavra segundo um modo de produção excretora particular, havendo, portanto, três tipos de linguagens conforme os tipos libidinais:

  • a linguagem erótico-uretral
  • a linguagem erótico-anal
  • a linguagem erótico-oral


Para cada uma dessas formas particulares de linguagem, Robert Fliess estabelece uma correspondência com um tipo de silêncio específico, posto que, se a palavra é um substituto da atividade esfincteriana, o silêncio equivaleria ao fechamento de um desses esfíncteres, e a dificuldade do analisando em seguir a regra fundamental da análise corresponderia a um medo de deslocamento dessa incontinência, ou, dito de outro modo, quando um paciente para de falar, a retenção das palavras pode corresponder a um tipo de produção excretora.
De acordo com o autor, haveria então três tipos de silêncio que corresponderiam a essa forma particular de fechamento esfincteriano:

  • o silêncio erótico-uretral
  • o silêncio erótico-anal
  • o silêncio erótico-oral


Para cada um deles corresponde um conjunto de características, tais como a maneira pela qual começa a pausa no discurso; o grau e o tipo de oposição à palavra e à comunicação do pensamento pelo silêncio; o comportamento durante o período de silêncio; o cessar, ou seja, a reação do paciente à injunção do analista para que retome a fala.
O silêncio erótico-uretral é a forma mais normal de silêncio e a que mais lembra a pontuação durante uma conversação. O parelho da linguagem funciona conforme o modelo do esfíncter uretral no momento do seu fechamento e o paciente não parece paralisado diante de nenhum conflito, seja ele interno ou externo, no início ou fim de momentos de silêncio. O que se pode observar é que o paciente está construindo o seu pensamento diante da sua fala. Se interrompido o fluxo de suas palavras, o aparelho de linguagem funcionará segundo o esfíncter da uretra sem graves problemas quanto ao seu fechamento ou a sua abertura.
O silêncio erótico-anal, ao contrário do seu correlato anterior, parece emanar de uma inibição. Durante o decurso de uma fala, o silêncio que se faz presente parece perturbar o falante que não consegue prosseguir o fluxo de pensamentos quando convidado pelo analista, apresentando um estado de tensão e conflito. Tal qual a abertura e o fechamento do esfíncter anal, o paciente quando experimenta momentos prolongados de silêncio, é capaz apenas de entregar uma pequena parte de seus pensamentos, o que torna esse tipo de silêncio mais regressivo do que o silêncio erótico-uretral, havendo ainda a possibilidade de apresentar uma “constipação verbal” quando manifesto.
Por fim, o silêncio erótico-oral é aquele que escapa ao controle da erogeneidade oral e ao contrário dos anteriores, substitui uma verbalização pelo silêncio propriamente dito. Lembra muito o mutismo e dá a impressão de que o paciente se ausentou física e psiquicamente, dado que esse silêncio se mostra interminável e raramente cessa diante de um pedido do analista. Aqui, apresenta-se uma falta completa de afeto, de motivação que pode induzir, sustentar ou acompanhar esse período de silêncio.
De acordo com Robert Fliess, em situações de silêncio erótico-oral o paciente libera energias ativas e passivas, explorando a situação analítica em termos de uma transferência que exige a incorporação do sujeito e do objeto; portanto, o analista deixa de existir como objeto do mundo exterior perdendo sua capacidade sugestiva. Neste tipo de silêncio, o aparelho de linguagem funciona a partir do controle do afeto regressivo de um ego infantil e precoce.
Para o autor, as diferentes formas de silêncio erótico parcial que se opõem à verbalização não passam de uma luta pelo controle da descarga pulsional engajado pelo ego infantil. Ao transformar os derivados do pensamento inconsciente recalcado em representações de palavras sonorizadas, a verbalização necessita de uma abertura do corpo que delimita uma zona erógena, permitindo uma regressão a essa zona. Sem o recurso à regra fundamental da psicanálise essa descarga não seria possível. Logo, para diferentes tipos de personalidades ou traços de caráter, apresentar-se-ia um tipo de sintoma diferente, e para cada um deles o analista deveria ser cuidadoso ao abordar o silêncio manifesto no setting, pois para cada caso, haveria uma forma diferencial no manejo da técnica.
Em termos econômicos e dinâmicos, a verbalização é o motor de diferentes modos de pensar que necessita de certa quantidade de energia para ser ab-reagida. De um ponto de vista topográfico, a verbalização é uma resposta de motilidade (discurso) a uma percepção (pensamento), ou seja, uma função do ego e um instrumento de apropriação do conteúdo inconsciente do ego. Portanto, a liberação do afeto regressivo pela utilização erógena do aparelho de linguagem na verbalização só poderia provocar transformações na constituição do prazer fisiológico do ego corporal.
Se em sua metapsicologia o silêncio pode ser compreendido a partir de pontos específicos de formações libidinais, na prática, o manejo não seria tão diferente daquele com o qual os analistas clássicos estavam acostumados a lidar. Nesse sentido, não há acolhimento, nem uma escuta profunda. O que há é a constituição de uma dinâmica que muito embora traga uma grande contribuição teórica para a metapsicologia do silêncio, na prática, não ressalta o valor positivo do silêncio no setting.



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .

Karl Abraham e os estágios pré-genitais da libido




Karl Abraham foi um dos primeiros psicanalistas estrangeiros a fazer parte do pequeno círculo que se formou em torno de Freud às quartas-feiras, em Viena. Nascera em Bremen, uma das cidades da Liga Hanseática na Alemanha em 1877, de família judia e extremamente religiosa. Era culto e resolveu cursar medicina, como era costume naquela época, terminando seu curso em Freiburg, próxima à fronteira da Suíça. Veio a se especializar em psiquiatria no hospital de Burghölzli de Zurique onde conheceu Carl Gustav Jung que o levou até Freud em 1907. Resolveu mudar-se para Berlim, ali se instando no ano seguinte, tornando-se, dentre os estrangeiros que participavam do seleto Circulo de Viena, um dos principais personagens da psicanálise alemã. Abraham também fundou a Sociedade Psicanalítica de Berlim, da qual foi presidente até seus últimos dias, vindo a falecer prematuramente aos 48 anos.
Seus estudos na área da sexualidade e da psicanálise são decorrentes de quatro grandes textos de Freud: “Três Ensaios da Teoria da Sexualidade”, “Caráter e erotismo anal”, “As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal” e “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico”, publicados por Freud entre 1905 e 1917.
Em “Contribuições à teoria do caráter anal” Abraham vai analisar as contribuições do caráter anal na formação de determinados traços caracterológicos, afirmando que o prazer primário em esvaziar os intestinos poderia ser sublimado no prazer de pintar, modelar ou em atividades similares, ou então avançava ao longo de um caminho de formação reativa, tal como um amor especial pela limpeza. Em outra perspectiva, retomou a relação indireta e inconsciente entre fezes e dinheiro, tal como no desenvolvimento de personalidades avarentas. Toda a relação será considerada a partir da forma como a criança lida com os seus excrementos e da forma como os adultos manejam ou educam seus filhos no trato com a limpeza intestinal.
Para o autor, o prazer no ato de excreção compreende além das sensações físicas, uma satisfação psíquica que se acha baseada na realização desse ato.
As crianças tão logo são educadas a conter ou expulsar seus excrementos em lugares específicos, aprende que o que elas produzem pode ter um grande valor para seus pais. Passa a se guiar por esse modelo de retenção e expulsão como que para ganhar um elogio, uma recompensa ou um carinho dos pais. No entanto, se algum dano for causado por eles ao narcisismo infantil, especialmente se esses danos forem de natureza persistente e sistemática, diz Abraham, forçando o hábito da criança antes que esta esteja preparada, ela passará a transferir para os objetos (pai ou mãe, inicialmente) os sentimentos que originalmente se acham ligados ao seu narcisismo. Quando a criança adquire essa capacidade de transferir para os objetos os sentimentos ligados aos seus hábitos de limpeza, ela se torna limpa “pelo amor dessa pessoa”. No entanto, se o hábito da limpeza for exigido muito cedo, ele poderá ser adquirido através do medo, fazendo com que sua resistência persista. Deste modo a libido se fixará narcisicamente, resultando numa permanente dificuldade na capacidade de amar.
As crianças que crescem em um intenso ambiente anal-erótico incorporam no conjunto de suas lembranças um signo de enorme poder, pois lidam o tempo todo com atitudes jocosas no que se refere ao trato intestinal e a forma como a educação e a limpeza são tratadas pelos adultos, superestimando a defecação e os excrementos através da linguagem corrente. Ao reconhecer no orgulho infantil pela evacuação um sentimento primitivo de poder, diz Abraham, é possível entender, por exemplo, a sensação de impotência encontrada em pacientes que se queixam de prisão de ventre neurótica, posto que sua libido fora deslocada da zona genital para a zona anal, inibindo suas funções intestinais do mesmo modo como se fosse uma impotência genital – é o caso das pessoas hipocondríacas que falam da sua impotência intestinal.
A prisão de ventre se apresenta nas crianças, geralmente, quando a defecação lhes é exigida, mas se rendem às necessidades quando a ocasião lhes parece agradável. Sua dificuldade em evacuar na verdade nada mais é do que uma proteção contra os imperativos de reter ou expulsar os excrementos. As crianças aprendem, assim, o valor da dádiva.
Para o autor, a entrega dos excrementos é a forma mais primitiva de uma criança doar ou presentear alguém. A relação com o dinheiro, neste caso, é direta. Reter ou doar fezes pode simbolizar guardar ou gastar dinheiro, guardar ou desperdiçar comida ou ainda reter a fala ou agir verborragicamente.
Além da influência do erotismo anal na formação do caráter, outro traço marcante é a influência do erotismo oral pontuado por Abraham, no qual certos elementos do erotismo anal sofrem uma transformação e entram na organização final da vida sexual madura de todos os indivíduos; uma outra parte é sublimada e a terceira vai formar o caráter de todos nós. No entanto, o autor acredita que o erotismo oral também é fonte da formação do caráter, de modo análogo ao erotismo genital, o que indica que todas as zonas erógenas participam da formação do caráter.
Haveria duas características que distinguiriam o erotismo anal do erotismo oral: no que se refere ao primeiro, diz o autor, apenas uma parte das tendências prazerosas que se acham relacionadas com os processos intestinais podem vir a fazer parte do erotismo normal sob forma não reprimida, enquanto que outra parte bem maior dos investimentos libidinais da boca pode ser empregada na vida posterior, não havendo necessidade dos elementos orais da sexualidade infantil se transformarem em formação de caráter; no que se refere à segunda, diz Abraham, devemos ter em mente a existência de uma transformação regressiva do caráter na fase anal que vai mais a frente irromper em traços caracterológicos ou perturbações nervosas de diversas.
Com isto, o autor quer afirmar que há uma relação muito próxima entre a origem do caráter oral e a história do erotismo oral. Enquanto que na fase sádico-anal, existe um prazer ligado à retenção e expulsão das fezes, na fase sádico-oral, o indivíduo tem um intenso prazer no ato de sugar e morder, independentemente da ingestão ou não de alimentos, posto que a boca se coaduna desde os momentos seguintes ao nascimento com uma zona erógena com vistas a obtenção de prazer. Esta forma primitiva de obtenção de prazer, diz Abraham, nunca é abandonada pelo indivíduo, e persiste sob todas as formas de disfarce ao longo da vida, podendo até experimentar algum tipo de reforço (é o caso, por exemplo, de pessoas que desenvolvem uma compulsão alimentar, permanecem todo o tempo mastigando algo ou precisam estimular a área da boca, com balas, bebidas ou cigarro, além de encontrar grande satisfação erótica na prática do sexo oral ou, por fim, no hábito da verborragia).
À medida que crescem, sabemos que as crianças renunciam ao seu prazer de sugar ou chuchar, deslocando-o para outras formas de obtenção de prazer, tais como as mencionadas acima. Além disso, há a irrupção dos dentes, na qual o prazer de sugar é substituído pelo prazer de morder. Este é o momento em que a criança começa a ter relações ambivalentes com os objetos externos, relacionando-se de forma tanto amistosa quanto hostil com eles. Nesse momento, diz Abraham, ocorre outro deslocamento de sensações agradáveis para outras áreas e funções corporais, ou seja, o prazer em sugar ou morder sofre uma espécie de migração por volta da época em que a criança está sendo desmamada ou, dito de outro modo, quando ela passa a ser treinada nos hábitos de higiene e limpeza quanto a urina e fezes.
A principal questão que o metapsicólogo levanta é a fixação em uma dessas fases. Sabemos que há mães que são indulgentes com a limpeza de seus filhos, muito embora haja outras que levem a maternidade a sério e tenham grande habilidade em repassar para eles os tratos com a higiene e a limpeza. A mãe tem que ser habilidosa para conseguir desmamar o seu filho na hora certa sem que a criança experimente esse momento como uma dificuldade, vindo a se aferrar com intensidade aos prazeres obtidos nesse estágio do erotismo oral. Caso isso ocorra, haverá a possibilidade do desenvolvimento de traços de carácter onde se dará não só uma fixação como também uma regressão a esse estágio do desenvolvimento.
Todo o caráter de uma pessoa se acha sobre influência do erotismo oral, mas só podemos demonstrar isso caso a caso. Ao atravessar o estágio oral, podemos encontrar pessoas que podem experimentar esse estágio de modo prazeroso ou desprazeroso, satisfatório ou perturbado. Os traços característicos de sujeitos que atravessaram esse período de modo desprazeroso ou perturbado, são justificados pelo caráter social em que essas pessoas parecem solicitar algo das outras; são espécies de “vampiros” sugadores que se aferram as pessoas, detestam ficar sozinhas, mesmo que por pouco tempo; sua impaciência é uma peculiaridade da sua personalidade e uma investigação psicanalítica revela, no mais das vezes, uma regressão do estágio sádico-oral para o de sucção. Consequentemente, seu anseio por experimentar gratificação através da sucção transformou-se, para Abraham, numa necessidade de “dar através da boca”, ou seja, deseja conseguir tudo o que puderem para satisfazer seu desejo, ao passo que tem necessidade constante de se comunicar oralmente com outras pessoas, resultando em uma obstinada necessidade de falar, somada a uma hiperfluência verbal e comunicação exacerbada. Nestes casos, as pessoas têm a impressão de que sua reserva de pensamento é infindável, tratando tudo o que tem a dizer com um valor inestimável. Fazem uma verdadeira descarga oral por meio da fala.
Ademais, nesse tipo de caráter a fala toma o lugar dos impulsos reprimidos e ao invés de morder e devorar o objeto, a conversa surge como forma de expressar toda a sua agressividade; o desejo de falar, por assim dizer, significa tão somente o desejo de atacar, aniquilar e matar o seu adversário, em uma espécie de “evacuação corporal” pela fala. Para Abraham, em tais casos o falar está sujeito à valorização narcísica de suas produções (físicas e psíquicas) no campo da fantasia.






Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .