domingo, 4 de novembro de 2012

Uma análise feita por amor







Poetisa norte-americana, também conhecida como H.D., Hilda conviveu desde cedo com um grupo de escritores, artistas e intelectuais ricos da burguesia do início do século. Foi analisada por Freud entre o período compreendido de 1933 a 1934, registrando um período de intensa convivência com o criador do método psicanalítico, trocando inclusive uma série de correspondências durante e posteriormente à sua análise.


Dois foram os registros dessa análise por Hilda. Um deles, Escrito na Parede, é a memória desse tratamento, e Advento, uma compilação dos diários mantidos pela autora durante o período da sua análise.

O texto não é o relato mais completo de uma análise com Freud. Outros autores já haviam se aventurado nesta empreitada, conforme afirma a prefaciadora do livro, a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco: a primeira, Minha Análise com Freud: Reminiscências, escrita por Abram Kardiner, e publicada em Inglês, em 1977 e a outra, Fragmentos de uma Análise com Freud, publicada em 1954 por Joseph Wortis.

O importante não é a fidedignidade dos textos escritos pelos analisandos de Freud, mas a oportunidade de que estes textos apresentem o criador da psicanálise, expondo-se, se apresentando como ele nunca ousou fazer, visto que o próprio Freud disse que iria dar trabalho aos seus biógrafos após a sua morte.

Muitos dos textos já conhecidos de Freud caíram em domínio público, mas há uma série de cartas, artigos inéditos depositados na Biblioteca do Congresso Nacional norte-americano, que só virão à publico após 1938, ou seja, 100 anos após a morte de Freud.

Quanto à Hilda, nascida em 10 de setembro de 1886 em Bethlehem, Pensilvânia, era advinda de uma família recomposta, com um pai professor universitário de física e astronomia, já casado uma vez antes de desposar Helen Wolle, mãe de Hilda.

Ela teve uma aproximação muito forte com a poesia anglo-americana, e da sua adolescência à vida adulta, fez um verdadeiro passeio por vários movimentos literários da poesia ao redor do mundo, mas eminentemente influenciada pela poesia europeia.

Casada e descasada algumas vezes, foi na homossexualidade que descobriu verdadeiramente o amor, vindo a conhecer, em 1918, Annie Winifred Ellerman, nascida em 1894 e aquela que se tornaria sua companheira de sua vida. Annie era cinéfila, romancista e curiosa da arquitetura, engajada na política e assumiu o pseudônimo de Bryher, referência a uma das ilhas Scilly, onde gostava de frequentar. Dizia-se que pertencia ao sexo intermediário, desejando os homens como um homem para melhor amar as mulheres ao mesmo tempo como mulher e como homem. Herdeira rica, amiga de Joyce e Hemingway, melancólica, fundou a livraria Shakespeare ¨Co., que logo logo se tornou um dos lugares mais frequentados da vida literária parisiense.

Foi Bryher quem se interessou primeiro pela psicanálise, antes mesmo de H.D. a descobrir. Munida de uma carta de recomendação de Havelock Ellis (que para quem não conhece, era um dos defensores dos direitos dos homossexuais na transição do século XIX para o século XX), Bruher encontrou-se com Freud em Viena e ficou deslumbrada com sua inteligência e seu modo de vida pouco avesso às normas burguesia. Ele a aconselhou a fazer análise em Berlim com Hanns Sachs, seu discípulo austríaco, que havia fundado junto com Otto Rank (aquele psicanalista contemporâneo de Freud que escreveu sobre o Trauma do Nascimento) a revista Imago. Sachs era amante da arte, literatura e cinema, e havia participado do roteiro de um filme chamado Os mistérios de uma alma (obra prima do cinema expressionista, segundo Roudinesco).

Sachs também estava adaptado ao Berliner Psychoanalustisches Institut, fundado por Max Eitington, outro discípulo de Freud, e presente nas suas reuniões das quartas-feiras, e estava mais aberto a questão da homossexualidade e quase não respeitava as regras que havia fundado e fixado para a formação dos psicanalistas. Além disso, segundo Roudinesco, era epicurista, gastrônomo, sedutor de mulheres e solteiro, capaz de todos os tipos de transgressões: saia de férias com seus analisandos em formação, e estes, com seus pacientes.

Entre 1828 e 1932, Bryher circulou por Londres, Berlim e Villa Kenwin para ser analisada por Sachs, logo cedo participando de encontros de psicanálise promovidos pela  IPA. Era crítica da orientação anglo-americana ortodoxos, sobretudo no que se referia às teorias em torno da homossexualidade masculina e feminina.

Hilda iniciou seu primeiro tratamento psicanalítico em Londres, em 1931, com Mary Chadwick, discípula de ninguém menos que Melanie Klein, que defendia a análise de crianças, quando Freud afirmava a que uma análise não deveria começar antes dos quatro anos de idade. Como sabemos, Klein defendia o acesso ao inconsciente de crianças através de dispositivos específicos – jogos, massa de modelar, cubos, bolas, brinquedos diversos, que permitia que a criança se expressasse. A sua perspectiva era analisar as relações arcaicas com a mãe, primeiro objeto de toda afeição posterior, ao passo que Freud defendia a prevalência do pai separador na dinâmica inconsciente, ou seja, a tese do monismo sexual e de essência masculina na libido humana, e que veio a ser explicitada em muitos dos seus textos, mas principalmente nos seus famosos Três Ensaios, no caso Hans, dentre outros.

Esta tese (sustentada pela escola vienense por psicanalista como Marie Bonaparte – amiga pessoal de Freud e Helene Deutsch) gerava problemas, não só dentro da própria metapsicologia como também na formação de psicanalistas, pois Freud não conseguia dar conta da diversidade das práticas homossexuais e bissexuais, já naquela época, arriscando-se a ser desmentido pela evolução dos costumes e pela transformação radical da visão da feminilidade, não somente pelas mulheres em busca de liberdade, independência e igualdade, mas também pelos homossexuais masculinos e femininos, que não podia de forma alguma aderir a uma tese tão pouco conforme à gênese de sua identidade.  Os analistas da escola inglesa, sobretudo aqueles que orientação kleiniana, defendia a cura da homossexualidade.

Diante de todo esse cenário, Mary Chadwick aplicou sua doutrina à cura de H.D., orientando a análise às profundezas da ligação com a mãe e uma preocupação normativa exagerada e foi um verdadeiro desastre, sugerindo a analisanda que fosse tentar a sorte em Viena, junto ao mestre Freud, e foi assim que 1 de março de 1933, um mês após a ascensão de Hitler à Chancelaria do Reich, ela se encontrou com Freud pela primeira vez, logo estabelecendo com ele uma relação transferencial positiva, colocando-o no lugar da sua mãe, o que Freud revidou com veemência: “Não gosto de ser a mãe numa transferência, isso me surpreende e me choca sempre um pouco. Sinto-me totalmente masculino”, acrescentando que isso as vezes acontecia com frequência com seus pacientes. Mal sabia ele que alguns anos mais tarde, um de seus herdeiros, Donald W. Winnicott iria defender justamente o lugar de mãe na análise para o bom andamento do tratamento, princípio básico da transferência, da confiança e do acolhimento ao sofrimento do analisando, trazendo bons resultados numa análise, sobretudo de paciente regredidos ou de personalidades narcísicas (borderline ou casos limites).
Diferente de sua discípula, Freud não tentou curar a homossexualidade de H.D., não a encerrando nos limites da sua teoria. Pelo contrário: ele contribuiu para deskleinizá-la, ou seja, ao invés de culpabilizá-la denunciando sua pouca aptidão por uma “sexualidade normal”, ele não cessou de valorizar sua atividade criadora, ocupando junto a H.D. um lugar ocupado por um antigo amor que valorizava seus escritos, mesmo quando estava convencido de ser suporte de uma transferência maternal.

De acordo com Roudinesco, mesmo que o texto de H.D. não se refira à homossexualidade, ainda assim, é disso que Freud vai cuidar ao longo do tempo da sua análise com H.D. Freud era tolerante à homossexualidade, compreendendo a sexualidade humana como eminentemente bissexual, recusando a maior parte das teses sexológicas da época, considerando a homossexualidade nem inata nem natural, mas o resultado de uma escolha psíquica inconsciente, recusando toda a forma de descriminalização contra os homossexuai. Não os achava nem invertidos, nem degenerados, nem anormais, nem estigmatizáveis em termos de raça, sustentando que era inútil tentar transformar um homossexual em heterossexual, ou vice-versa.

Freud também tinha suas razões para mudar de opinião e não tentar estigmatizar a homossexualidade não só dentro da sua teoria como dentro da própria vida social que pertencia.  Um dos motivos estava centrado na sua própria filha e fiel escudeira, Anna Freud, por quem nutria um amor paterno chegando a defendê-la de todos os homens que se aproximassem dela, inclusive Ernest Jones, seu biógrafo oficial e amigo pessoal. Anna Freud era considerada sua Antígona, referência à filha de Édipo Rei. Preocupado em vê-la solteira por causa das suas proibições, ela acaba resistindo às investidas dos homens que a cortejavam, daí decidindo-se por analisa-la n período entre 1918 e 1920 e entre 1922 e 1924, tendo por principal testemunha outra discípula sua, Lou Andreas-Salomé.

Foi a ela quem Anna confessou sua atração por mulheres no momento em que preparava sua primeira apresentação em um congresso de psicanálise. Mas foi resultante da sua análise com seu pai que Anna Freud se constituiu hostil à homossexualidade, considerando-a como doença curável pela análise, até conhecer Dorothy Tiffany Burlingham, por quem tomará por companheira pelo resta da sua vida. Nascida em Nova Iorque e neta do fundador das lojas Tiffany & Co., Dorothy se separou de um marido violento, deixando os Estados Unidos com seus quatro filhos para se submeter a uma análise com Theodor Reik, outro amigo de Freud e participante dos encontros das quartas-feiras,. Foi através dele que Dorothy veio a conhecer, em 1925, Anna Freud, que não hesitando ao finalizar o tratamento com seu pai, tornou-se preceptora e depois analista dos filhos de Dorothy e passando a manter uma relação de amizade a amor que as deixavam mais próximas.

De acordo com Roudinesco, sessenta anos antes da palavra “homoparentalidade”, Anna tornou-se co-mãe dos filhos de Dorothy, e juntas decidiram alugar um apartamento no número 19 da Bergasse, ou seja, mesmo prédio da família e do consultório dos Freud.

Quanto a Freud, para manter a filha perto dele, não hesitou em ser o patriarca de uma nova família, somando à sua, a família de Dorothy, descrevendo numa carta a Ludwig Binswanger que os laços simbióticos com uma família americana (sem marido) se tornavam cada vez mais sólidos, de modo a partilharem de viagens de férias durante o verão.

Assim compreendemos melhor a tolerância de Freud em relação às relações de Hild Doolittle com seus amigos e sua amante e que fez com que o criador da psicanálise empreendesse uma análise mais humanamente útil aquela que trazia-lhe seus sofrimentos resultantes ou não das suas escolhas afetivas, não cessando de incentivar sua criação artística nem se furtar de manter uma correspondência com H.D. durante o período de sua análise até bem pouco antes de sua morte, já refugiado na Inglaterra, por conta da sua fuga contra o nazismo.

Os analistas de hoje ficariam espantados de saber o quanto Freud estava à frente da ciência que inventara. E uma boa forma de conhecer a sua genialidade, está no excelente texto que nos chega em português,  Por amor a Freud – memórias de minha análise com Sigmund Freud, escrito pela sua analisanda Hilda Doolittle, ou simplesmente, a poetisa H. D.





Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. 

sábado, 18 de agosto de 2012

UMA POLÍTICA DE VIDA E MORTE EM GIORGIO AGAMBEN




“Não há maior solidão do que aquela nos olhos de um homem morto;
e não há maior desafio do que aquele que aparece no frio semblante de um falecido”.

Rosenzweig

Ninguém pensa na morte. Mas ela faz parte do nosso dia a dia. A cada milésimo de segundo, milhões de células do nosso corpo morrem, e outros milhões nascem. A cada minuto, no mundo, alguém tem que decidir entre a vida e a morte de uma pessoa sob condições irreversíveis de doenças. Milhões são gastos dia a dia para manter viva uma pessoa sob condição vegetativa, entubadas ou dependentes de aparelhos para sobreviver, sem que, no entanto, exista legislação suficiente para dar conta dessa realidade no mundo.
Será que realmente precisamos de uma política de vida e uma política de morte, uma “biopolítica e uma tanatopolítica”?
Gostaria de discutir o assunto a partir das considerações do filósofo italiano Giogio Agamben e suas concepções acerca de vida e morte.
Agamben parte das referências gregas para situar o campo da vida. Para ele, os gregos tinham duas formas de definir vida: zoé,  que dizia respeito a vida comum de todos os seres vivos (animais, homens ou deuses), ao próprio fato de estar vivo; e biós, que seria a forma de viver a própria vida organizada em torno de um grupo ou comunidade, com estatuto político e possibilidade de potencialidade. Para ele, a zoé grega nada mais seria do que viver livremente, fora das grades da política, da lei e dos cálculos do poder. A isso ele se referiu como sendo “vida nua”. “Vida nua” refere-se, então, a uma forma de vida na qual não se pode incidir nenhuma forma de controle, nenhum poder, nenhum direito, mas também nenhum dever. Exemplos de “vida nua” podem ser encontrados em pessoas refugiadas, nos campos de concentração, em cobaias humanas, em prisioneiros políticos, ou ainda em pessoas cuja autonomia sobre a própria vida não é mais possível (pessoas em coma, em morte-cerebral, e grosso modo, condenados à morte, estariam aqui incluídos).
Até então, a organização da vida dos seres humanos girava em torno dessa premissa, como um “animal vivente capaz de existência política”. Mas durante a história da modernidade, houve um tempo em que a vida natural começou a ser incluída nos mecanismos e cálculos do poder estatal e a política passou a se transformar naquilo que Foucault denominou de biopolítica, a qual, a vida biológica passou a ocupar, passo a passo, o centro da cena política moderna.
O que Foucault chamou de biopolítica, foi a implicação da vida natural do homem nos mecanismos e cálculos do biopoder de modo a controlá-la. Primeiramente, quem passou a ter poder sobre a vida humana foi a medicina, com a preocupação de regras gerais de controle da natalidade, de contenção de doenças e endemias, com a construção de hospitais e alocação dos “doentes mentais” em “asilos para loucos” e, como não poderia deixar de ser, com a sexualidade de um modo geral. A biopolítica se dava, principalmente, sobre um disciplinamento do corpo da população através de uma medicalização e normalização dos códigos que a regiam. Posteriormente, a biopoder vai dar conta de outros setores da população, ele vai incidir mais ainda no controle dos corpos dos indivíduos, prolongando seus tentáculos nas escolas, nas fábricas e nas prisões. Em sua análise, vemos como o poder passou a penetrar no próprio corpo dos sujeitos e nas suas diversas formas de vida.
O corpo, para Foucault, era um corpo controlável, dócil, sujeito aos ditames do biopoder e da biopolítica. A ideia de vida, para ele, só poderia ser pensada a partir da ideia de morte. A morte seria um momento de desalienação total, no qual nos tornamos singular.
Mas nem sempre a morte foi pensada desse modo. Morrer ou matar era uma dádiva do rei ou do soberano, que detinha o poder de vida e de morte da população. A mudança da noção de morte no ocidente, segundo Foucault, operou de modo a estabelecer um poder de morte sobre a vida, e essa fase de transição fez com que fosse inscrita nos mecanismos do biopoder. Antes, o poder soberano se definia através do pensamento “fazer morrer e deixar morrer”, agora, o Estado considerava “fazer viver e deixar morrer”. Esse poder sobre a vida e a morte, foi condicionado, em um primeiro momento, ao soberano, e muito posteriormente ao Estado através da medicina no campo da biopolítica.
O soberano era aquele que podia decidir sobre a vida do povo sem que fosse submetido a qualquer sanção, sem que fosse punido pela sua decisão. É essa ideia de soberania e sacralidade da vida que Agamben vai reter para começar a pensar o conceito de “vida” tal como “vida nua”, ao pensar o fenômeno do Holocausto como o último exemplo onde o biopoder se manifestou vividamente.
Para ele, “homo sacer” era aquele cuja vida podia ser matável sem que estivesse na esfera do sacrifício e sem que alguém fosse punido pela sua morte. Sua vida era despida de qualquer valor. Em suas palavras, “a especificidade do homo sacer é a impunidade da sua morte e o veto de sacrifício”. O “homo sacer” é excluído da comunidade na forma daquela pessoa que poder ser sacrificada – o melhor exemplo disso foi encontrado nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial através do nazismo. Toda vida insacrificável e, todavia, matável, descreve Agamben, é vida sacra.
Para Agamben, “soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera. (...) Sacra, isto é, matável e insacrificável, é originariamente a vida no bando soberano, e a produção da vida nua é, neste sentido, o préstimo original da soberania. A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono”.
É preciso que se retenha isso em mente, para que possamos compreender como Agamben vai compreender a “politização da vida” e, sobretudo a “politização da morte”, de modo a buscar formas de se tentar sair dessa armadilha e como isso se coaduna com o tema proposto. Caminhemos um pouco mais.
Nem sempre o “direito à vida” foi um direito inerente a todos os cidadãos.
De acordo com Hannah Arendt “somente quando a imortalidade da vida individual passou a ser o credo básico da humanidade ocidental, isto é, somente com o surgimento do cristianismo, a vida na Terra passou também a ser o bem supremo do homem”. O cristianismo foi o responsável pela ideia de inviolabilidade da vida, cuja era moderna passou a operar sob a premissa de que a vida seria um bem supremo, passando a valorizá-la e a conceder-lhe um valor tal qual um bem supremo.
O processo de politização da vida se deu quando passamos a compreender a vida biológica do ser vivente e suas necessidades, como parte integrante da política, sendo o corpo o novo sujeito da política reivindicado pela democracia moderna. De acordo com Agamben, “se é verdade que a lei necessita, para a sua vigência, de um corpo, se é possível falar, neste sentido, do ‘desejo da lei de ter um corpo’, a democracia respondeu ao seu desejo obrigando a lei a tomar sob seus cuidados este corpo”.
Dito de outro modo, o processo de politização da vida se deu, quando passamos a valorar a vida como um bem supremo e inviolável, quando passamos a acreditar que seria necessário defendê-la a qualquer custo garantindo a autonomia de cada um, elegendo a materialidade do corpo como ferramenta a ser valorizada.
Para Hannah Arendt, “foi precisamente a vida individual que passou então a ocupar a posição antes ocupada pela ‘vida’ do corpo político; e as palavras de Paulo – de que ‘a morte é o prêmio do pecado’, uma vez que a vida se deveria durar para sempre – repete a afirmação de Cícero, de que a morte é a recompensa dos pecados cometidos por comunidades políticas que haviam sido construídas para durar por toda a eternidade”.
Pois bem, segundo o filósofo Joseph Raz, o valor da vida de uma pessoa só é determinado pelo valor que concedemos às suas ocupações, dos seus relacionamentos e de suas experiências, ou seja, pelo seu próprio conteúdo. Nesse caso, continuar vivo, diz o autor, depende muito mais do valor do conteúdo da vida de cada um de nós para que passemos a acreditar que vale a pena permanecer vivo por mais tempo.
Joseph Raz faz algumas distinções entre valorar ou não a vida. Para ele, há duas possibilidades, entre tantas. O “valor da vida passada”, na qual  podemos dizer se tivemos uma vida boa ou má, e o “valor de sobrevivência”, na qual podemos não valorar de modo algum a vida que tivemos. É importante observar que, apesar de não dialogar diretamente com Agamben, Joseph Raz se coloca diante do valor que atribuímos à vida e à morte de modo crítico. Diz que assim como valoramos a vida, também valoramos a morte. De fato, é impossível ter a experiência de morte para dizer se esta foi uma morte boa ou má, mas a mortalidade, diz ele, é vital para a nossa existência. Sem ela, não teríamos como dizer se a vida que tivemos foi boa ou má. Termos como boa ou má vida, juvelinidade, longevidade, entre outros seriam impensáveis sem a experiência da morte. Mas não seria esta, justamente a assimetria da vida e da morte a qual nos reportamos anteriormente? Como ter uma experiência de existir sem passar pelo nascimento? Só conseguimos ter o sentimento dessa materialidade corpórea, porque já passamos pela experiência de existir. Ora, mas antes de nascermos, também não existíamos, então, por que não conseguimos pensar na vida como “não existindo” antes do nosso nascimento? Resposta simples: impossível! Este seria o “ponto de vista de lugar nenhum” referido por Thomas Nagel e retomado por Joseph Raz para suas análises sobre o “valor da vida” e sobre o fenômeno da morte tais como na eutanásia, nas experiências de “vida vegetativa” e “morte-cerebral”.
Compreendemos, portanto, que esse é o mote pensado por Agamben para discutir as questões ligadas à “vida que não merece ser vivida”, no tocante às cobaias humanas, à eutanásia e à morte-cerebral.
De acordo com Agamben, o conceito de “vida sem valor” ou “indigna de ser vivida” aplica-se, substancialmente a todos os indivíduos que devem ser considerados “incuravelmente perdidos” em decorrência de uma doença ou ferimento grave e que tenham consciência de sua condição.
Sem querer tomar nenhum posicionamento ético diante da questão, Agamben vai questionar sobre o direito de termos autonomia diante de nossa própria vida, ou porque não dizer, sobre nossa própria morte. Se foi necessário que toda uma conjuntura política requerida pela sociedade em estabelecer leis em prol do valor da vida, como devemos proceder em situações onde a decisão de continuar ou não vivendo deve ser posicionamento legal? A quem devemos conceder o direito de estabelecer em que momento termina a vida e em que momento “começa” a morte? E nos casos em que o sujeito pode decidir sobre sua própria vida?
O que Agamben chama de “politização da morte” foram todos os dispositivos que fizeram com que a medicina e o direito passassem a se interpenetrar de modo a fazer com que a vida nua habitasse de modo definitivo o espaço de exceção da qual fazia parte através do advento das novas tecnologias de prolongamento da vida, cuja morte se transformava, pouco a pouco, em um “epifenômeno da tecnologia do transplante”.
Como consequência, o biopoder passou das mãos do soberano, para as mãos do médico-cientista, e destes, para as mãos do Estado, que converteu a biopolítica em biopoder, e logo em seguida, em tanatopolítica, decidindo quem “pode viver” e quem “deve morrer”.
Agora, é o Estado quem deve decidir sobre o “falso-vivo”, o “comatoso”, o “corpo cadáver” ou o “cadáver vivo”, e assim, fazendo crer que organismos vivos, de fato, pertencem ao poder público. Claro, não somos hipócritas em pensar que nas salas de mantimento da vida, médicos e enfermeiros decidem muito antes e nas surdinas quem deve e quem não deve viver. Uma prática corrente, que vez ou outra, chega até nós através da mídia. Mas é preciso compreender que o advento das novas tecnologias, nos colocaram dilemas éticos cada vez mais impensáveis há poucas décadas, e que sem essa discussão sobre o que é e o que não é vida e morte, não podemos nos posicionar sobre a continuidade ou não de nossa existência.
Vida nua sim, mas, sob quais condições? Se nos fosse perguntado e se nos fosse dado o ônus de escolher a forma em que gostaríamos de permanecer vivo, qual forma escolheríamos? A vida imputada pelo cristianismo, pautada no sofrimento, na dor e na submissão de viver encerrado em um corpo que não mais responde às nossas expectativas de vida, ou nas condições que nos faz ser um cérebro, descarnado e despersonificado? Será que mesmo assim, ainda teríamos condições de decidir pela vida? Por outro lado, que garantia teríamos de que a morte, nessas condições, seria a melhor resposta às nossas inquietações diante da nossa incondicional onipotência narcísica diante do que já fomos ou gostaríamos de ser?
Nas culturas asiáticas, a morte, há muito deixou de ser pensada como um fim nela mesma, propondo uma nova concepção de vida mesmo depois de nossa existência terrena.
A vida é, em síntese, potencialidade, ou seja, todas as formas que o sujeito humano consciente pode criar para dirigir sua pulsão de vida contra a pulsão de morte. A potência de vida só se coaduna em ato, como modo de nossa própria existência.
Mas é preciso estar sempre alerta, como nos tenta avisar Paul Rabinow, de como essa biopolítica, na contemporaneidade, tem se convertido naquilo que ele chama de biossociabilidade, ou seja, toda uma forma de vida baseada nas novas convenções tecnológicas de verdades.
O fato é que com os avanços tecnológicos da medicina, a biopolítica não teve outra saída a não ser converter-se, pouco a pouco, em tanatopolítica, trazendo como consequência a necessidade de se legislar sobre uma nova realidade que antes não teríamos como dar conta: o momento em que podemos decidir sobre a nossa vida, livrando-nos das prisões impostas pela medicina, pela tecnologia, pela ciência, e pela “sacrossantidade da vida”. 



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .

sábado, 2 de junho de 2012

Para os que partem e para os que ficam (*)






Sejam bem vindos ao primeiro ano do resto de suas vidas!!!
Eu gostaria de dividir com vocês o que eu penso ser um momento de graça e alegria para muitos de que estão partindo e para muitos dos que estão chegando.
Eu gostaria também de dizer a vocês da minha imensa satisfação em ter trabalhado com vocês durante os meses em que se seguiram e aproveitar a oportunidade de dizer o que penso e como me sinto nesse momento de confraternização.
Um dia, um jovem analista se propôs a oferecer estágio em psicologia clínica na abordagem psicanalítica, e passar seus conhecimentos para outros jovens que estava para começar uma jornada: a jornada da vida profissional ao final de um bom tempo de estudos, aulas, trabalhos em grupo, provas, fichamentos, monitorias, monografias, monotonias...
Eu fiz o convite e vocês aceitaram a empreitada em descobrir o que esse jovem analista tinha para lhes oferecer. Afinal, vocês nunca tinham ouvido falar a meu respeito, não sabiam quem eu era, minha trajetória acadêmica ou profissional, no máximo, tinham à disposição a ferramenta da internet e um documento lá... bem lá-ttes para saber se iriam ou não tomar a decisão certa em me escolher como aquele que proporia dividir com vocês o que aprendera em todos os anos de clínica.
Sabemos que não foi uma tarefa fácil. Mas vocês toparam o desafio. Eu topei o desafio, posto que se vocês não me conheciam, eu também não sabia quem vocês eram ou de onde vinha, o que estudaram, o que sabiam, quais os seus planos, quais suas fantasias, quais seus DESEJOS diante do meu convite.
Pois bem... duas turmas se constituíram: uma, decidiu saber mais sobre o meu objeto de investigação na prática clínica (o silêncio); a outra decidiu saber mais sobre um autor pouco conhecido na formação de todos vocês (Winnicott).
Juntos, pudemos descobrir na prática clínica, com seus pacientes, o que alguns velhos monstros sagrados tentaram nos ensinar. O Velho Criador (Freud), nos mostrou que o eu não é senhor nem dentro da sua própria casa – foi ele quem começou toda essa jornada. O Velho Rabugento (Lacan), nos mostrou que o ISSO é estruturado como uma LINGUAGEM, portanto, cuidado no que vocês andam falando por ai, pois tudo, tudo, tudo tem UM SIGNIFICADO, UM SIGNIFICANTE, UMA SIGNIFICAÇÃO. Por fim, a Velha Raposa (Winnicott) tentou nos ensinar como BRINCAR com crianças e com palavras, como a FANTASIA e a CRIATIVIDADE faz parte da SAÚDE de todos nós, e como podemos ser sujeitos bem melhores independente do rochedo da castração ou da viscosidade da libido.
Os inícios dessa jornada, como sabem, também foi pontuado por uma série de provoca-ações. Lembram? Deixem-me recorda-los um pouco, pois vamos terminar essa jornada como tudo começou.
Um dia lembrei-lhes que despertou na alma de um artista o desejo de esculpir uma estátua: a estátua do Prazer que dura um instante. Ele partiu pelo mundo à procura do bronze, porque ele só podia trabalhar com o bronze, mas todo o bronze existente no mundo havia desaparecido e não se encontrava em nenhum outro lugar a não ser na estátua da Dor que é permanente. Fora o artista que com as próprias mãos que havia fundido essa estátua colocando-a no túmulo de alguém que amara muito na vida, como símbolo do amor masculino (que é imortal), e a dor humana (que dura a vida inteira). Então ele resolveu refazer tudo, retirou a estátua do túmulo da morta, pondo-a num grande forno, derretendo-a e com o bronze da estátua da Dor que é permanente, fundiu a do Prazer que dura um instante.[1]
A dor que é permanente é a dor daquele que chega até vocês pedindo ajuda para uma pobre alma diante da hemorragia do seu sofrimento psíquico. O prazer que dura um instante, é a capacidade de constituirmos em nossos pacientes um momento de alivio para a sua dor, seja ela qual for. Afinal de contas, estamos muito mais “além do princípio do prazer”.
Mostrei-lhes também a história do poeta que vivia no campo, entre prados, rios, topos de colinas e alguns bosques contando para adultos e crianças, as maravilhas que havia visto durante sua jornada. Este poeta dizia que encontrava pequeninos faunos entre as folhas dos bosques; nereidas de cabelos esverdeados emergindo das águas cristalinas do lago, cantando ao som das harpas; um grande centauro no alto das colinas, galopando, sorrindo e envolto em nuvens de pó, até que um dia, voltando para a cidade, viu todas essas coisas maravilhosas que tanto relatara. Lá chegando, adultos e crianças se reuniram em torno dele para ouvir suas histórias, mas ele respondeu: “Hoje nada tenho para lhes contar, não vi coisa alguma”. Isto porque, conta-nos Oscar Wilde neste lindo conto, que naquele dia, todas as coisas maravilhosas foram vistas de fato pelo poeta, e para ele, a fantasia é de fato a realidade e a realidade nada significa[2].
Com isso, pude instigar a imaginação de vocês para o bom uso na clínica. Para um analista ou um psicólogo clínico, a fantasia e a imaginação são ferramentas de trabalho, e às vezes, a REALIDADE com a qual lidamos nada mais é do que a REALIDADE PSÍQUICA, e dito isto, pouco importa se é verdade ou fantasia o que nos contam.
Também tentei lhes ensinar que "Uma vez no divã, somos todos iguais diante da falta, do rochedo da castração, da inveja do pênis, da viscosidade da libido, do real, do gozo ou da insustentável divisão do não-ser. (...) E que aos tolos, resta a incansável busca do Santo Graal erótico; e a nós, a consciência trágica, contrita, heróica e dilacerada de que a ferida da existência não tem cura”[3]. Pode não ter cura, mas pode ter alivio diante dessa existência, pois conforme afirma Freud, todo ser humano anseia pelo retorno aos braços de Abraão.
Vocês mergulharam no universo psicanalítico diante de suas faltas, de seus desejos, de seus medos, de suas angústias, de sua insofismável condição de (quase) nada saber para uma pretensiosa condição de querer saber (ou SUPOSTO SABER, diria o velho rabugento).
O que tentei lhes ensinar, penso, não se ensina a ninguém – aprende-se com uma boa dose de intuição e disponibilidade para aprender a ouvir nossos pacientes. Para mim, essa tarefa é a mais inglória, mas vamos lá: tentei lhes ensinar a brincar com crianças (e trazer o lúdico e o afeto para a cena analítica – dá para fazer isso, minha gente!!!); tentei lhes ensinar a brincar com as palavras (freudiana, lacaniana [por que não/sim] e winnicottiana). Tentei lhes ensinar que nem só de Freud e Lacan vive o psicanalista, mas de todo o arcabouçou teórico que a psicanálise dispõe para lidar com o sofrimento psíquico dos nossos pacientes.
Tentei lhes passar a minha experiência através dos meus atos (alguns falhos - bem sabemos que foram muitos – pão de mel; sim querendo dizer não; Lacan querendo dizer Winnicott, pois o analista falha, e como dizia Winnicott, como toda mãe suficientemente boa, este deve falhar para o melhor proveito do seu paciente).
Tentei abrir suas mentes para um encontro de inconscientes – os seus e o dos seus pacientes; e acima de tudo, tentei lhes dizer o quão verdadeiro é o psicoterapeuta que segue a sua intuição. Lhes falei do inconsciente não-dizível – aquele que não é dado através da palavra, mas através de atos, gestos, olhares, tessituras. Demonstrei como nem sempre o uso do divã é necessário para uma análise. Muitas vezes, esta deve ser sustentada no e pelo olhar, e para uma alma em sofrimento, nada melhor do que espiar para dentro de uma janela refletida como modelo especular do OUTRO (outrão e outrinho). Mostrei como um simples gesto de positivação do ego trás recompensas que jamais esperamos, muito embora, essas recompensas venham em forma de um bombom de chocolate, ou um gesto de carinho de nossos pacientes, porque não? Mas nem sempre a tentativa de lhes ensinar o impossível foi uma via de mão única.
Vocês me ensinaram também. E vão deixar marcas. Como esquecer de pérolas do cotidiano que vocês tão bem souberam construir ao longo desses 17 meses que permanecemos juntos?
Veja bem Milton...  blá, blá, blá.. Um dia toda mãe vai dizer: trepem!!! Ou então dirá: Restrepem!!! Não foi assim com o caso da jovem homossexual? E o caso da jovem transexual? Ou ainda o caso da jovem heterossexual? Ou até mesmo o caso do jovem pervertido por pés? Ou a angústia daquela estagiária cujo paciente nunca vinha para a sessão, e quando vinha, chegava na hora de acabar? Tem ainda o jovem que assistia filmes do youtube de baile funk para se excitar nas noites insones. Da jovem que “mamava” na lata de leite condensado. Aquela paciente que na verdade, era uma menina triste em busca do seu referencial de alegria. Temos a jovem adolescente com um vazio interior muito profundo, mas que chegou a estourar balões com seu vazio! Me recordo ainda da comunicação silenciosa que se estabeleceu entre uma estagiária e seu paciente silencioso, da garota que chegou a se apaixonar por uma outra que nunca existiu, do menino cuidador de sua família e de sua mãe, e tantos outros que não daria aqui para incluir numa longa lista ao longo dos meses que permanecemos juntos, mas que certamente todos vocês sabem quem são.
Não vou me prolongar, esse era para ser um texto curto, curtíssimo, mas já se vão quatro páginas, e o que eu na verdade queria lhes dizer vem em seguida.
Quando sentei para escrever esse texto, a primeira coisa que me veio à mente (afinal de contas, não é disso que se trata o tempo todo nosso trabalho?), foi uma canção que retrata um pouco do que lhes queria comunicar durante o tempo em que permanecemos juntos. Quero que vocês saiam hoje com essa canção na cabeça estejam vocês onde estiverem daqui em diante.



Todos os dias é um vai-e-vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega pra ficar
Tem gente que vai pra nunca mais
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai e quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim, chegar e partir
São só dois lados da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem da partida
A hora do encontro
É também despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
É a vida desse meu lugar
É a vida[4].

Para os que partem, saibam que foi um prazer trabalhar com vocês. Levem consigo a crença de que tentei dar o máximo que me foi possível para contribuir na sua formação profissional. Perdoem meus erros e equívocos (para não dizer atos falhos). Isso também faz parte do jogo. Para os que permanecem, será muito bom aproveitar mais algum tempo com vocês no tempo que nos resta. Para os que acabam de chegar e ficam, gostaria de lhes dizer que é isso a vida: chegadas e partidas, encontros e despedidas. E que também me empenharei ao máximo em contribuir com o futuro profissional de vocês, na medida do impossível.
Queria terminar com um refrão de uma outra música que celebra a vida, a sua vida profissional que começa de hoje em diante:




Viver!
E não ter a vergonha
De ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser
Um eterno aprendiz...
Ah meu Deus!
Eu sei, eu sei
Que a vida devia ser
Bem melhor e será
Mas isso não impede
Que eu repita
É bonita, é bonita
E é bonita...[5]


Somos todos eternos aprendizes nessa jornada que se inicia. Um feliz 2012 para todos vocês!!!



Rio de Janeiro, 15 de Dezembro de 2011.





(*) Este texto, apesar de simples, é dedicado a Nathalia Lima Silveira, Vanessa Teixeira dos Santos, Camila Carvalho Machado, Felipe Nunes de Lima, Gustavo Corinto da Silva, Moisés dos Santos Vidal, Gabriela Souza, anna carolina das neves mourão, fernanda simões e senna, natalia serafim da silva e julia torres miranda de sá, minha primeira turma de estagiários da Divisão de Psicologia Aplicada Profa. Isabel Adrados do Instituto de Psicologia da UFRJ. Aprendi muito com todos vocês. Texto preparado para a última reunião de supervisão clínica e lido em 15 de dezembro de 2011.


[1] Wilde, Oscar. O artista Em As obras primas de Oscar Wilde. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 495-496.
[2] Idem, p. 497-498.
[3] Costa, Jurandir Freire. A questão da identidade sexual In Granã, Roberto. Homossexualidade: formulações psicanalíticas atuais. Porto Alegre: Artmed, 1998, p. 15-27.
[4] "Encontros e despedidas", Maria Rita.
[5] "O que é o que é", Gonzaguinha.








Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .

sábado, 14 de abril de 2012

O sofrimento e suas funções para o homem


Primeiramente, eu gostaria de agradecer a organização do evento pelo convite em participar do X SIMBIDOR e poder contribuir a partir dos meus estudos e pesquisas sobre o sofrimento humano.
De antemão, gostaria de dizer que sou um estudioso da alma humana em seu profundo pesar diante da vida, do desespero e do despedaçamento de não se constituir como um sujeito, uma pessoa ou um indivíduo em sua singularidade e em suas relações diárias.
O sofrimento de que trato, não se dá verdadeiramente no corpo, e sim na alma. Tarefa inglória para um profissional da minha área, que não dispõe de remédios ou de instrumentos cirúrgicos ou ainda de equipamentos de alta tecnologia para aliviar a dor e o sofrimento humano daqueles que me procuram com um padecimento da alma. Meu instrumento de trabalho é a palavra e o tratamento que lhes ofereço é a “cura pela fala”, ou no mais das vezes, o acolhimento do sofrimento humano diante de uma alma que sangra e que pede ajuda em sua agonia.
Não coincidentemente, o título desta mesa se constitui com uma pergunta: “Duas horas sobre sofrimento. Mas... não é muito sofrimento não?”. Não sei o que os meus colegas da mesa pensam sobre a questão e como proposta  de trabalho na tarde de hoje mas, da minha parte, penso que duas horas é uma simples gota no oceano diante da imensidão do sofrimento humano.
No entanto é fundamental que se afirme de imediato que há algo no organismo humano que habita na dor. Sem ela, nossa existência estaria ameaçada posto que a dor e o sofrimento dimensiona nossa vida subjetiva: nascemos pela dor e pelo sofrimento e muitas vezes é através da dor e do sofrimento que chegamos ao fim da vida. Nascemos pela dor e pelo grito, da mãe e do bebê que vem ao mundo em sua condição de recém chegado. Não morremos de dor. Enquanto há dor, há vida e temos forças de combate-la e a continuar vivendo. É pela dor e pelo sofrimento que também dimensionamos nossa relação com o outro e com o ambiente que nos rodeia e faz a interconexão entre o nosso estado fisiológico e psíquico. Assim, podemos afirmar sem reservas que o ser humano necessita da dor e do sofrimento para situa-lo na sua própria história e trajetória de vida.
Do ponto de vista da psicopatologia, é a dor que lança o homem na busca interminável de sentido, colocando-o em movimento. Mas só seres humanos conseguem dar sentido ao que sentem, descrevendo como sendo prazer ou dor, porque são capazes de significar o registro das emoções e dos sentimentos.
A dor e o sofrimento psíquicos são únicos na história de vida de cada ser humano, posto que são sentimentos e sensações de difícil dimensionamento e que escapa à nossa razão. Nesse sentido, a dor física ou psíquica são sempre fenômenos limites para a nossa própria subjetividade.
Os sentimentos de prazer ou dor, por consequência, são os alicerces da nossa mente. Eles são os sentimentos de toda e qualquer emoção, ou dos diversos estados que se relacionam com uma emoção qualquer. É a mais universal das melodias, uma canção que só descansa quando chega o sono, e que se torna um verdadeiro hino quando a alegria nos ocupa, ou se desfaz em lúgubre réquiem quando a tristeza nos invade.
De acordo com o neurocientista António Damásio, os sentimentos são a expressão do florescimento ou do sofrimento humano, na mente e no corpo. Os sentimentos não são uma mera decoração das emoções, qualquer coisa que possamos guardar ou jogar fora. Os sentimentos podem ser, e geralmente são, revelações (itálicos do autor) do estado da vida dentro do organismo. (...) A maior parte dos sentimentos são expressões de uma luta contínua para atingir o equilíbrio, reflexos de todos os minúsculos ajustamentos e correções sem os quais o espetáculo colapsa por inteiro.
Para o autor, compreender a neurobiologia das emoções e dos sentimentos é necessário para que se possam formular princípios, métodos e leis capazes de reduzir o sofrimento humano e engrandecer o florescimento humano, ou seja, para Damásio, a compreensão do sofrimento humano está eminentemente calcada na compreensão da neurobiologia das emoções e dos sentimentos. Isto não quer dizer que, ao compreender a neurobiologia das emoções e dos sentimentos, não possamos representa-los através da palavra.
Ora, mas é preciso que se diga que não são apenas os seres humanos que demonstram compaixão pelo sofrimento de um outro ser. Variadas espécies não humanas também podem demonstrar compaixão pelo sofrimento de seu semelhante, mas não através da representação da palavra.
Não há dúvida de que a mente humana é especial, especial na sua capacidade imensa de sentir prazer e dor e de conhecer a dor e o prazer de outros; especial na sua capacidade de amar e perdoar. Especial na sua memória prodigiosa e na sua capacidade de simbolizar e narrar; especial no seu dom de linguagem com sintaxe; especial na capacidade de compreender o universo e criar novos universos; especial na velocidade e facilidade com que manipula e integra os conhecimentos que permitem a solução de um problema.
Com efeito, para Damásio, dor e prazer são parte de duas genealogias completamente diferentes da regulação da vida. Eles são as alavancas de que o organismo necessita para que as estratégias instintivas e adquiridas atuem com eficácia. (...) Quando muitos indivíduos, em grupos sociais, experienciaram as consequências dolorosas de fenômenos psicológicos, sociais e naturais, tornou-se possível o desenvolvimento de estratégias culturais e intelectuais para fazer face à experiência da dor e para conseguir reduzi-la. (...) Embora nossas reações à dor e ao prazer possam ser alteradas pela educação, constituem um excelente exemplo de fenômenos mentais que dependem da ativação de disposições inatas.
Portanto, o sofrimento proporciona a melhor proteção para a nossa sobrevivência, uma vez que aumenta a probabilidade de darmos atenção aos sinais de dor e agirmos no sentido de evitar sua origem ou corrigir suas consequências.
Por exemplo, os indivíduos afetados por analgesia não adquirem estratégias normais de comportamento. Alguns deles passam o tempo rindo, apesar de a doença os levar a destruir as articulações privadas de dor rompendo ligamentos e articulações, queimaduras graves, ou quebra de algum osso ou dano a órgãos. Não obstante, por conseguirem sentir prazer, podem ser influenciados por sensações positivas. Eles são impedidos de sentirem dor, mas não estão impedidos de sentirem prazer.
Mas também é preciso lembrar que tanto a dor quanto o sofrimento precisam ser distintas: há autores que afirmam que há dores físicas e psíquicas ou somáticas. Da minha parte, não vejo diferença entre uma dor que se constitui como física e outra que se constitui psíquica. De igual modo, não consigo distinguir um sofrimento físico de um sofrimento psíquico, visto que ambos se afetam mutuamente.
A dor psíquica, explica o psicanalista Juan-David Nasio, é uma dor de separação, quando esta significa erradicação e perda de um objeto ao qual estamos intimamente ligados, tal como é o caso de uma pessoa amada, um objeto, um valor ou a integridade de nosso corpo, mas somos nós que construímos esses laços através de processos inconscientes, portanto, uma teia tecida por fios muito sutis que lida as diversas separações dolorosas da nossa existência. Por outro lado, a dor também pode ser de abandono quando o amado toma de volta o amor que nos destinou (tal como minha paciente relata, e desconfio se o seu câncer não seria uma tentativa de resgatar parte da mãe pela via da dor e do sofrimento ou um desejo de sair de cena do mesmo, tal a identificação com sua mãe). Outra possibilidade é a dor da humilhação quando somos feridos em nosso amor próprio, ou por fim, a dor da mutilação, quando perdemos parte do nosso.
Por outro lado, o sofrimento diz respeito a uma perturbação global, psíquica e corporal, provocada por uma excitação violenta, porto que, enquanto a dor física é uma sensação delimitada e definida na materialidade do nosso corpo, o sofrimento ou dor psíquica é uma emoção mal definida e que precisa e apela para uma compreensão. No entanto, no domínio da nossa subjetividade, tanto uma dor centrada na materialidade da carne afetará nosso estado psíquico e emocional, quanto um sofrimento psíquico afetará nosso corpo, pois a dor, seja ela de qual ordem for, é o derradeiro afeto, diz Násio, a última muralha antes da loucura e da morte.
Não há cisão nem física nem metafísica entre a mente ou o cérebro e o corpo. Não há um abismo que separa o psíquico do somático. Não há sujeito no mundo que não altere o seu estado psíquico quando padece de um uma dor orgânica, nem muito menos há um sujeito que não tenha estados alterados na sua fisiologia quando sofre de uma dor psíquica. Tomemos dois outros exemplos: nosso humor, nossa paciência e nossa irritação se tornam uma constante quando sofremos de uma dor de dente, uma apendicite, uma enxaqueca ou um cálculo renal. Consequentemente, nossas taxas hormonais ficam muito debilitadas quando sofremos a perda de um amor ou de um ente querido.
Se a dor altera nosso estado de humor e se torna o último afeto ou a última muralha a ser ultrapassada entre a loucura e a morte, o sofrimento designará uma perturbação global, uma emoção mal definida e, portanto,  psíquica e corporal, provocando uma excitação violenta em nosso organismo.
Tomemos o exemplo das dores reumáticas ou da artrose, ou seja, uma destruição progressiva dos tecidos que compõem a articulação e permite nossa mobilidade. Quando chegamos a certa idade, que pode ser diferente de homens para mulheres, de ocidentais para orientais, de região para região e até mesmo de país para país com suas respectivas condições de vida, a medida que o organismo humano envelhece a artrose se instala em praticamente mais de cem por cento da população mundial com mais de oitenta anos. Assim, a dor lembra constantemente ao psiquismo que o organismo está velho e não suporta certos movimentos outrora praticados na juventude. Se a mente não envelhece, o mesmo não se pode dizer do corpo com suas mazelas fisiológicas que a velhice traz consigo.
A dor pode ser considerada uma das formas mais elementares do organismo humano se defender e quando ela aparece, significa que há algo que precisa de maior atenção e cuidado da nossa parte.
Não é a toa que a International Association for the Study of Pain (Associação Internacional para o Estudo da Dor), define dor como uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a uma lesão tissular existente ou potencial, ou descrita em termos que significam tal lesão. Mas é preciso que se diga que a dor e o sofrimento variam de intensidade de indivíduo para indivíduo.
Por isso, cada um de nós reage a um estímulo doloroso de modo diferente e buscamos o amparo para esse sofrimento das mais diversas formas. Uns, consegue sustentar e manter a dor em níveis mais ou menos moderados, sem recorrer nem a drogas lícitas nem a drogas ilícitas. Outros, fazem uso indistintamente de uma delas, sem grandes arroubos de sentimento de culpa ou julgamento valorativo. Mais alguns podem sucumbir ao seu sofrimento e, além de associar a psicofármacos, buscam na cura pela palavra, uma melhor compreensão do seu sofrimento.
Sabemos que a Psicofarmacologia floresceu principalmente nos anos de 1950 ajudando na construção de outra identidade para a psiquiatria e consequentemente para a medicina. Em seguida, já nos anos 70, o paradigma biológico da psiquiatria se impôs reconstruindo o discurso psicopatológico, fazendo com que a psicanálise perdesse sua hegemonia no campo da psiquiatria, passando a ocupar um lugar secundário. Por fim, o desenvolvimento das neurociências no início dos anos 90 possibilitou a reconstrução da medicina mental, fazendo com que o saber psiquiátrico se transformasse não apenas em uma ciência, mas em uma especialidade médica. Baseada no discurso das neurociências, a psicopatologia questionou a causalidade moral das perturbações do espírito, valendo-se do discurso psiquiátrico.
Os psicofármacos cada vez mais poderosos passaram a regular e controlar cada vez mais a dor e o sofrimento psíquico, possibilitando nos relacionar com a dor mental de outro modo, tais como na medicalização da angústia e da depressão, e porque não mesmo dizer do amor?
A medicalização do humor, das paixões e do sofrimento psíquico e dos seus transtornos passou cada vez mais a fazer parte do novo dia a dia. Ora, em qualquer banca de jornal ou revista semanal, tomamos conhecimento dos mais recentes lançamentos da indústria farmacêutica no alívio de alguns desses males que eu citei. Como disse o psicanalista Joel Birman há pouco mais de uma década, “diante de qualquer angústia, tristeza ou desconforto psíquico, os clínicos passaram a prescrever, sem pestanejar, os psicofármacos mágicos, isto é, ansiolíticos e antidepressivos”.
Ninguém mais em nossos dias aguenta sentir por alguns minutos, dor de dente, dor de ouvido, dor de cabeça ou enxaqueca. Perdemos essa capacidade insofismável de nos relacionar relativamente bem com a dor e o sofrimento físico ou psíquico, do qual eram acostumados nossos avós. Para eles, até a morte de um ente querido ou o fim de um relacionamento baseado no amor ou no romantismo era bem negociável com seu próprio eu do que nos dias atuais.
Tanto a indústria dos psicofármacos quanto das drogas ilegais são facilmente recorridos por pessoas indistintamente à classe social a que pertençam, para alívio imediato de qualquer tipo de sofrimento físico, mas principalmente psíquico.
Da indústria psicofarmacológica ao narcotráfico, o fim é o mesmo: sedação da angústia, eliminação da dor e das excitações excessivas a base de ansiolíticos, extermínio das paixões depressivas com antidepressivos e busca do ideal de estesia psíquica no sujeito e normalização de seus humores intempestivos, seja adulto ou criança, sendo que, estas últimas, antes concebidas como “espertas” ou “criativas” ou até mesmo “inventivas”, passaram por uma nova classificação terna e cognitiva para uma nosologia médica e psiquiátrica, enquadrada em um transtorno conhecimento pela insígnia de 4 letras – TDAH – ou seja, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, para não falar do seu correlato adulto com as psicopatologia da modernidade, quais sejam, as depressões, as síndromes do pânico e a solidão, já que a toxicomania já está ficando fora de moda nos últimos dez anos, não obstante ser ainda um problema de saúde pública em cidades grandes como São Paulo ou Rio de Janeiro.
Sabemos que a experiência do sofrimento e a prática de curar, cuidar ou tratar nem sempre foram do domínio científico, é uma articulação da medicina moderna clínica realizada através de experimentos laboratoriais de Claude Bernard e de François Magendie.
No entanto, a dor expõe um parodoxo de difícil mensuração, posto que a dor e o sofrimento apresentam-se através da palavra pela sua própria natureza de significação, porém, para falar, o homem precisa de silêncio em sua grande dimensão intuitiva e introspectiva.
Winnicott, em seu livro “Natureza Humana”, esboça uma noção de psicopatologia, ou seja, uma discussão sobre saúde e doença a partir de uma tríplice aliança: soma, psique e mente, afirmando que para uma boa saúde física, fez-se necessário uma hereditariedade (nature) e uma criação (nurture) suficientemente bons, ou seja, a saúde da psique é uma questão de maturidade e que saúde intelectual não faz sentido pois dependeria, com efeito, de um bom funcionamento do cérebro.
Para concluir, eu diria, junto com Winnicott, que talvez um pouco de loucura seja necessária para nos fazer retornar ao equilíbrio que tanto necessitamos em termos de saúde, ou dito de outro modo, talvez um pouco de sofrimento seja necessário para nos tornar um pouco mais humano.




Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .