sábado, 23 de julho de 2011

Vida e criatividade em Winnicott



Donald Winnicott nunca se preocupou explicitamente em escrever sobre o conceito de vida e muito menos sobre o conceito de morte ao longo de seus textos. Quando o fez, foi através de outras discussões teóricas que o permitia distinguir entre a vida normal e a patológica, entre a saúde e a doença. Porém, é possível pinçar no escopo de sua obra, o que seria sua “pedra de toque”, seu “elan vital” para o desenvolvimento de um indivíduo saudável: a criatividade.
Para esse psicanalista inglês sua compreensão de vida saudável estava indubitavelmente imbricado com a noção de vida criativa, pois só na criatividade o sujeito é capaz de ser saudável e viver a vida satisfatoriamente. Criatividade aqui está sustentada naquilo que o autor denomina da capacidade insofismável de brincar, ou, em suas palavras, “é através da percepção criativa mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. É no brincar que podemos manifestar a nossa criatividade e é somente no brincar que o indivíduo, seja ele criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar a sua personalidade integral, ou dito de outro modo, é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o seu “eu”. O brincar e a criatividade, portanto, são inerentes ao próprio fato de viver; são características particulares da vida e da existência humana. Todavia, necessitamos do ambiente para que essa capacidade possa se realizar. Winnicott diz que a criatividade, em si, nada tem a ver com a criatividade artística, bem entendida, a criatividade artística é uma das modalidades que o sujeito pode vir a desenvolver durante a sua vida, mas não é condição fundamental do nosso “eu”, do nosso “self”.
E o que seria, afinal, viver criativamente?
Para ele, a criatividade além de se relacionar diretamente com a capacidade de estar vivo, também se refere à capacidade que os seres humanos têm de se relacionar com a realidade externa.
A capacidade criativa, diz Winnicott, está diretamente relacionada à característica particular que faz os seres humanos serem demasiadamente humanos, de poder perceber o mundo à sua volta de modo criativo. Ser criativo refere-se às singularidades que fazem os seres humanos diferentes uns dos outros, ou seja, não é unicamente a capacidade consciente e racional de se relacionar com o mundo e com os outros seres humanos, mas de poder fazer planos para o futuro, amar e ser amado, ter atividades profissionais, inventar novos modos de vida, criar seus filhos, brincar e participar de jogos de linguagem, enfim, interagir com o mundo através de todos os órgãos do sentido, inclusive ter a possibilidade de criar objetos de arte ou ainda capacidades intelectuais tais como compor uma música, uma partitura, escrever um livro, inventar receitas culinárias ou até mesmo uma nova teoria ou fórmula química. O sujeito criativo e saudável interage com o mundo a sua volta.
No campo dos sentimentos e das sensações, “a vida de um indivíduo saudável é caracterizada [ainda] por medos, sentimentos, conflitos, dúvidas, frustrações, tanto quanto por características positivas. O principal é que o homem ou a mulher sintam que estão vivendo sua própria vida, assumindo responsabilidades pela ação e pela inatividade, e sejam capazes de assumir os aplausos pelo sucesso ou as censuras pelas falhas”, diz Winnicott.
Para tanto, é preciso estar sujeito ao impulso criativo. Estar sujeito ao impulso criativo é, para o autor, “algo que pode ser considerado como uma coisa em si, algo naturalmente necessário a um artista na produção de uma obra de arte, mas também algo que se faz presente quando qualquer pessoa – bebê, criança, adolescente, adulto ou velho – se inclina de maneira saudável para algo ou realiza deliberadamente alguma coisa, desde uma sujeira com fezes ou o prolongar do ato de chorar como fruição de um som musical”. Mas vale lembrar que, de acordo com Winnicott, a criatividade só pode ser estabelecida pela provisão de um “ambiente suficientemente bom”.
Não obstante, prossegue o autor, “descobrimos que os indivíduos vivem criativamente e sentem que a vida merece ser vivida ou, então, que não podem viver criativamente e tem dúvidas sobre o valor de viver. Essa variável nos seres humanos está diretamente relacionada à qualidade e à quantidade das provisões ambientais no começo ou nas fases primitivas da experiência da vida de cada bebê”, mas também na experiência de vida de cada ser humano adulto.
A relação entre as provisões ambientais, ou seja, o ambiente suficientemente bom e a criatividade, é referida por Winnicott como sendo o ambiente cultural em que estamos inserido. Logo, a criatividade estaria na capacidade singular do indivíduo experimentar os diferentes universos culturais, experimentando o mundo à sua volta como fazendo parte de si mesmo, como produto de sua potência. O homem suficientemente sadio é aquele que têm experiências culturais variadas e de riquezas infinitas. A cultura, portanto, é o “lugar onde vivemos”, é a parte sadia da nossa vida emocional, a própria morada da ação criativa, bem como a possibilidade de compreender a vida como um bem em potencial.
De acordo com Winnicott, para nos constituirmos como um indivíduo saudável, devemos experimentar três modos singulares de vida, a saber: a) a vida no mundo: onde as relações interpessoais constituem a chave até mesmo para o uso de um ambiente não humano; b) a vida da realidade psíquica pessoal ou interna: visto que a pessoa é mais rica, mais profunda e mais interessante do que outra quando é criativa [aqui podemos também incluir o material que surge dos sonhos] e c) a vida cultural: que começa como um jogo, conduz ao domínio da herança humana, incluindo artes, mitos históricos, pensamento filosófico e das ciências em geral, da religião, etc., e é parte integrante da existência humana, subproduto da saúde.
Logo, a vida criativa, pensada através da provisão de um ambiente suficientemente bom e espelhada na cultura, nada mais seria do que a capacidade de criar o mundo. Para criar o mundo, precisamos ter um sentimento de existência, precisamos estar vivo, precisamos ter a sensação de que somos nós mesmos. É a vida como potência da qual nos fala esse grande psicanalista inglês e sua indubitável sensibilidade criativa.





Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

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