segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A história do diagnóstico de morte-cerebral





De acordo com a filósofa Hannah Arendt no seu livro “A Condição Humana”, “o mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos. Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tornar ‘artificial’ a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, (...) e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos”.

A profecia (ainda) não se realizou desde que Hannah Arendt escreveu “A Condição Humana”, mas talvez  isso não seja um sonho impossível de se viver daqui a alguns anos, desde que o avanço da tecnologia médica tem prolongado a vida humana até os limites em que a própria ciência traçou para si. Hoje, sabe-se que é possível diagnosticar com precisão quase milimétrica, a localização da consciência no cérebro, através dos famosos PET-Scans, “escaneamento de imagens cerebrais” via computador, permitindo que médicos façam diagnósticos precisos quando há ou não morte-cerebral, tão necessário quando hoje vivemos em um mundo cuja doação e transplantes de órgãos são realidades bem mais palpáveis do que há 50 anos.

Mas ao contrário do que a literatura médica e científica tem apresentado historicamente, o diagnóstico e definição de morte-cerebral não é tão recente assim.

Göran Settergren afirma que entre 1894 e 1965, pelo menos quatro neurocirurgiões já haviam observado “morte-cerebral” em seus pacientes, ainda sem usar a expressão tal qual ela é usada ainda hoje.

Durante o século XIX, afirma o autor, muitos médicos e cientistas estavam interessados na patofisiologia do cérebro e, durante o século XX, houve uma mudança de paradigma quando o conceito de morte-cerebral foi introduzido na literatura médica, mudando o foco da atenção do coração para o cérebro ao se definir morte a partir de  critérios médicos..

Isso fica claro, quando há mais de cem anos, a definição de morte estava centrada na parada dos batimentos cardíacos e na respiração como critérios médicos válidos para se definir morte. Com o avanço da tecnologia e dos conhecimentos médicos-científicos, a morte pôde ser definida a partir das funções do tronco cerebral.

De acordo com Settergren em 1894, o cirurgião, neurocirurgião e patologista Horsley, na Inglaterra, descreveu pela primeira vez, o caso de um dos seus pacientes com tumor cerebral, que após o diagnóstico de sua morte, entenda-se, parada da respiração, seu coração continuou batendo. Isso foi o início do uso de “respiradouro artificial” para prolongar a vida dos pacientes.

Posteriormente, em 1901, o cirurgião e neurocirurgião Cushing, nos Estados Unidos, depois de tomar conhecimento dos trabalhos de outro neurocirurgião chamado Duckworth, em 1898, relatou a cirurgia em um de seus pacientes com tumor cerebral e alta pressão intracranial (ICP – intracrancial pressure) cuja respiração parou, a pressão sangüínea caiu, porém, o coração continuou a bater algum tempo depois antes de morrer definitivamente. Foi a segunda vez (ou seria a primeira?) que o conceito de morte cerebral apareceu na literatura médica.

Em seguida, em 1959, o neurocirurgião Wertheimer, entre outros, na França, propuseram parar de usar o tratamento de ventilação se a morte do sistema nervoso fosse diagnosticada por investigações clínicas e repetidas verificações de ausência de atividade eletrocefalográfica (EGG) no córtex e no diencéfalo. Se isso fosse controlado, haveria atividade cardíaca. Mais tarde, Mollaret e Goulon em um relatório preliminar, descreveram o que eles chamaram de “coma profundo” (“coma dépassé”) baseado em 23 observações de casos clínicos sem respiração artificial (ventilação) espontânea, sem reflexos, poliúria, baixa pressão sanguínea e ausência de atividade eletrocefalogáfica.

Por fim, em 1965, autoridades médicas se encontraram na Suécia para definir regras no transplante de órgãos. Nesse encontro, o neurocirurgião Frykholm circulou um memorando no qual ele propunha que pacientes preenchessem alguns critérios sugeridos por outros neurocirurgiões para declarar o paciente legalmente morto, a saber, “nenhuma circulação cerebral na angiografia, nenhum reflexo central, coma profundo e nenhuma respiração espontânea”. A única razão para continuar o tratamento de ventilação era se o paciente fosse doador de órgãos, o que ele foi criticado duramente. Esse debate começou na França em 1959 e se estendeu até 1965 na Suécia, até chegar aos critérios de morte para todo o cérebro, quais sejam, coma-profundo, ausência espontânea de respiração e reflexos centrais, hipotensão, hipotermia e evidências de falta de atividade elétrica demonstrada por eletrocefalograma e/ou ausência de circulação cerebral demonstrado em angiografia.

Esses critérios, como sabemos, mudaram ao longo dos anos, principalmente com o avanço das neurociências, mas não sem antes haver uma definição do que seria morte-cerebral por um comitê médico científico de renome internacional, para estabelecer critérios válidos e até hoje usados. Isso veio ocorrer 3 anos depois nos Estados Unidos.

Nessa época, havia um consenso geral de que a definição de morte estava ligada à parada nas funções cardio-respiratórias. Até então, esses eram os critérios adotados na maior parte da comunidade médica internacional. Mas historiadores têm considerado o ano de 1968 como o ano em que o termo morte-cerebral foi definido por um comitê médico-científico estabelecendo critérios para a diagnose da morte, e conseqüentemente, definindo também o que seria vida.

Esse comitê ficou conhecido primeiramente como o “Comitê Ad Hoc da Escola de Medicina de Harvard para Exame da Definição de Morte Cerebral” (The Ad Hoc Committee of the Harvard Medical School to Examine the Definition of Brain Death), e posteriormente como o Comitê de Morte-Cerebral de Harvard (Harvard Brain Death Committee), liderado pelo  anestesista chefe do Hospital Geral de Massachusetts Henry Beecher e formado por 10 representantes da área médica , além de um advogado, um historiador e um teólogo, com vistas a dar um referencial não só para a diagnose da morte, mas também para ajudar a estabelecer critérios nos transplantes de órgãos que já passavam a ser corrente naquela época. De acordo com Henry Beecher, havia chegado a hora de avaliar mais detidamente a definição de morte, visto que todos os grandes hospitais naquela época já possuía uma multidão de pacientes a espera de doadores de órgãos. Porém há pouca divulgação do trabalho do Comitê da Harvard com o primeiro transplante cardíaco realizado pelo médico Christiaan Bernad em dezembro de 1967, fundamental para a formação do Comitê da Harvard para avaliação e diagnose de morte-cerebral.

Em 1968 a comunidade médico-científica tomou conhecimento da publicação do “Relatório do Comitê Ad Hoc da Escola Médica de Harvard” (Ad Hoc Committee of the Harvard Medical School) estabelecendo critérios válidos para serem usados na diagnose e definição de morte cerebral. Muitos desses critérios são usados até hoje, sobretudo, para ajudar na decisão de transplantes de órgãos. Mas foi na década de 80 em diante que se deu o triunfo da redefinição de morte proposta pelo Comitê da Harvard, a ponto de mais de 15 países fazerem uso desses critérios. Mas até se chegar a essa definição, houve um grande debate por parte da comunidade médica, que não conseguia chegar a um consenso sobre a definição mais apropriada, visto que traziam, em seu cerne, várias considerações, éticas, jurídicas e científicas para um diagnóstico mais apropriado. Até a publicação do relatório pelo Comitê da Escola Médica de Harvard, o que definia morte ainda era a parada cardio-respiratória.

Primeiramente, se pensava que a morte-cerebral deveria ser definida pela perda da função de todo o centro nervoso central, mas essa tese foi abandonada por se tornar evidente que essa função podia persistir independente das funções do cérebro.

Outros médicos argumentavam que a definição deveria dar conta da “perda da personalidade” e da “identidade pessoal”, que incluiria “racionalidade, sociabilidade, auto-cuidado, capacidade para comportamento intencional e habilidade para conservar e cuidar de seus próprios projetos de vida”, porém, personalidade e identidade são conceitos de difícil definição e não poderiam ser alocados nos critérios de morte-cerebral, contudo, a perda da consciência foi um dos critérios mantidos na definição de morte-cerebral.

Em síntese, os critérios utilizados iam de ausência de atividade elétrica no cérebro medida por eletrocefalograma, ausência de reflexo pupilar, ausência de respiração autônoma na retirada do suporte artificial (ventilação), perda permanente da consciência e conseqüentemente coma permanente ou irreversível, entre outros.

As grandes discussões éticas seguidas a partir de então, pavimentaram o campo daquilo que conhecemos hoje como sendo Bioética, fazendo o campo jurídico se movimentar no que diz respeito à criação de leis para poder decidir sobre a vida e a morte de pessoas acometidas de morte-cerebral.

Não obstante, Gary S. Belkin cita várias críticas que se pôde fazer ao relatório na época de sua publicação, mas afirma que foi necessário definir o que seria morte-cerebral no sentido de estabelecer critérios válidos para a doação de órgãos, construindo toda uma “ética para transplantes”. Mais do que isso, o estabelecimento de critérios do que seria morte-cerebral, foi decisivo para que o campo da medicina definisse também o que é vida, projetando, no futuro, todo um campo jurídico de especialistas em Bioética.


Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

domingo, 9 de outubro de 2011

Christopher Bollas: silêncio, regressão e elaboração psíquica



Um dos autores da Escola Inglesa de Psicanálise que mais contribuiu para um metapsicologia do silêncio na psicanálise foi Christopher Bollas.

Para este autor, o silêncio pode ser uma ótima oportunidade de viver a regressão à dependência e o analista deve perceber isso no decurso de um processo com seu paciente. Se o analista não percebe, ele poderá impedir um processo regressivo produtivo e induzirá, segundo Bollas, à uma descompensação psicótica, ou levará seu paciente a atuar exigências regressivas em outros lugares que não o setting, ou ainda impedirá o processo regressivo.

Quais seriam as condições para uma regressão, segundo Bollas? De acordo com autor, certos aspectos da regressão estariam no deitar no divã, nas sensações física de ser contido pelo divã, o conforto e o prazer de obter a atenção do analista, a experiência da dimensão temporal vivida no setting, a sensação de proteção do analista, a contemplação dos objetos no setting, entre outros, disponibilizaria a regressão do paciente. Mas nem toda essa experiência pode ser vivenciada no divã. Isto pode ser perfeitamente vivido com a paciente confortavelmente sentado diante do seu analista. O divã não é condição necessária para a regressão. Em alguns casos, a experiência do divã pode ser experienciada como total abandono e solidão por parte do paciente.

Porém, a condição mais importante é, sem dúvida, a compreensão do analista desse fenômeno, ou dito de outro modo, a estrutura mental do analista junto ao seu paciente através da transferência e da contratransferência, e que possibilita ao paciente reviver as experiências do self como um “conhecido não-pensado”.

Para compreender a regressão à dependência em sua estreita relação com uma teoria da comunicação e não-comunicação, é preciso que possamos estabelecer uma diferença entre os usos que o analisando faz do silêncio.

Primeira afirmação a ser feita: o silêncio na análise, tal como formulado historicamente por Freud, pode ser considerado como uma resistência do paciente. Quanto a isto, estamos todos de acordo. Neste caso, é preciso que o analista se informe sobre a reserva do seu paciente em falar. Essa resistência pode se constituir como um problema no manejo da transferência? É resistência do analisando em relação ao analista ou é uma demanda pessoal e intrínseca do próprio paciente? É preciso ter em mente essa forma de silêncio como resistência para que o manejo da técnica seja adequada. Quando isto acontece, geralmente com pacientes neuróticos ou psiconeuróticos, Winnicott é claro: uso da regra de ouro da psicanálise clássica!

Segunda afirmação: o silêncio é condição necessária, mas não suficiente, da regressão à dependência. Aqui, ele é vivido como um meio pelo qual se experiencia o continente analítico; é aquele silêncio semelhante ao vivido por uma criança dez a vinte minutos antes de cair em sono profundo. De acordo com autor, essa sensação é vivida quando a criança está prestes a cair em sono profundo e se recolhe do mundo e da realidade externa, revivendo às vezes os acontecimentos do dia, ou está em fantasia com algum objeto subjetivo, ou ainda está imaginando-se numa fantasia qualquer. Em crianças maiores, esse momento também pode ser vivido através do pensamento em uma música, ou pode estar fazendo algum cálculo matemático, ou ainda pensando sobre o que sua mãe ou seu pai fizeram ao longo do dia, ou, por fim, alguma cena que viveu durante este dia ou até mesmo o dia anterior.

Para Bollas “o silêncio é geralmente uma condição necessária para o ‘processar’ do mundo interno e da realidade externa. Esse tempo precioso antes do sono é uma experiência vital para as crianças e dura da primeira infância até, pelo menos, a adolescência, inclusive. É frequentemente acompanhado por brinquedos, já que algumas crianças dormem com um ursinho na cama, e até um certo ponto, esses ‘objetos transicionais’ fazem parte da natureza da ‘área intermediária da experiência’ a qual, na minha opinião, descreve apropriadamente esse uso do silêncio”.

É preciso ainda enfatizar, por um lado, que quando ocorre uma regressão à dependência no decurso de uma análise é porque esse terreno já vinha sendo preparado pelo analista a partir dos laços transferenciais sem envolver angústias psicóticas e o paciente vivenciou silêncios que permitiram as experiências regressivas. Neste caso, tanto analista quanto analisando se predispunham a esse encontro fundante do sujeito, ou conforme afirma Bollas, “o analista levando em consideração e apoiando a necessidade do silêncio do analisando e este descobrindo experiências internas por meio desse silêncio”.

Por outro lado, é preciso considerar uma outra faceta do silêncio. Refiro-me ao silêncio da reflexão tal como formulado por Bollas, ou o silêncio da elaboração e da perlaboração.

Este silêncio, assim concebido, o analisando encontra-se como que “flanando”, em um “estado sem forma”. Não se trata de estados mentais ativos e sim um “pensar intimamente”, “estudar em silêncio”, “meditar”, “analisar”, “construir interiormente”. Este tipo de silêncio em nada tem a ver com estados regredidos ou pacientes em regressão. Ele pode se dar em qualquer momento da análise, no início, meio ou até mesmo antes do final de um processo analítico. Trata-se de um momento estético, uma memória do estado de ser, no qual o tempo, o espaço, o ritmo e o corpo do paciente não podem ser dimensionados. Na verdade é um processo de construção interna que pode ser resultante de uma associação livre do paciente ou de algo que o analista lhes disse.

Aqui, quatro condições são especialmente necessárias para o bom desenvolvimento de uma análise: primeiro, o analista deve compreender que o silêncio neste caso não se trata de uma resistência e seu trabalho está em ajudar a desenvolver a capacidade de pensar, refletir e elaborar do seu paciente. Segundo, sua compreensão do uso do silêncio por parte do analisando cria a capacidade deste em usar o silêncio em sua própria análise – geralmente, este estado é alcançado por outros analistas clássicos que não consideram a dimensão do silêncio em sua prática clínica. Terceiro, uma vez  que o analisando compreende isso, pode-se permitir o curso de uma regressão à dependência para, por fim, fazer uso da reflexão como uma habilidade receptiva no decurso de uma análise, sem que o analista se sinta constrangido ou mesmo ameaçado com estados silenciosos do seu paciente.

O analista, neste instante da análise, tem de ser capaz de renunciar às suas defesas contra a ansiedade, o medo da aniquilação, da perda de identidade sua e de seu paciente. Concomitantemente, sua identidade deve permanecer distinta e seu sentido de realidade inalterado, mantendo a consciência no nível da realidade e da ilusão, ou seja, deve assumir uma posição de cuidado tal qual aquele observado na relação mãe-bebê ou mãe-suficientemente-boa, sem fazer da atitude profissional de analista um traço dessa relação, mas sim, uma relação direta e empática com o paciente. Feito isto, pode-se almejar a tolerar seu amor e seu ódio sem revidar, quando muito, sua indiferença e, por fim, tolerar suas próprias emoções oriundas dessa relação, quando despertadas.

Este é o momento em que a intersubjetividade entra em cena no processo analítico, semelhante aquele momento vivido na trajetória de vida do infante: um encontro entre inconsciente. Muitas das vezes, o analista e o analisando experimentam isso como uma transmissão de pensamento: é a hora em que uma ideia, uma sensação ou ate mesmo uma pergunta são capturados pelo inconsciente do outro e verbalizados por um deles, surpreendendo-se quando isto ocorre. Aqui também podemos observar o quanto de material transferencial e contratransferencial pode surgir no decurso de uma análise. É o mais perfeito exemplo de que haveria uma transmissão ou comunicação de inconscientes entre dois sujeitos em análise, e como tal, esse processo intersubjetivo vivido no setting pode contribuir, facilitar ou promover a regressão à dependência, processo esse necessário para restituir as falhas ambientais.




Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

Silêncio e Pensamento em Michael Balint

A Escola Inglesa de Psicanálise se notabilizou por diferentes abordagens em torno das relações de objeto. Dentre os autores desta escola de psicanálise, Michael Balint foi um dos que contribuiu para uma análise do silêncio na teoria psicanalítica.

A partir de sua experiência com pacientes silenciosos, Balint reforçou que o silêncio cada vez mais tem sido reconhecido por ter muitos significados que não aqueles pontuados por Freud e seus discípulos, pelo contrário, ele pode ter muitos significados sendo que cada um deles exige um manejo diferente por parte do analista.

De acordo com autor, o silêncio pode se constituir como “um vazio árido e assustador, inimigo da vida e do crescimento, no qual o paciente deve ser retirado dele o mais cedo possível”. Em outro momento, Balint afirma que o silêncio poder uma excitante e amigável expansão, convidando o paciente a empreender jornadas de aventuras em terras desconhecidas de sua vida de fantasia, na qual qualquer interpretação transferencial estará completamente deslocada. Por fim, o silêncio ainda pode significar uma tentativa de reestabelecer o amor primário que existe em cada indivíduo a partir de uma relação objetal.

No setting analítico, quando o silêncio é interrompido, ele pode ser experienciado como invasão, intrusão ou até mesmo interpretações deslocadas do mundo interior do indivíduo, sobretudo quando pacientes estão na fase da regressão à dependência. Neste caso, os pacientes encontram-se ou retraídos ou em estados de pura introspecção quando a análise já caminhou um pouco mais, produzindo uma devastação ou uma desorganização no mundo interno desse indivíduo. De acordo com Balint, um paciente silencioso pode estar afastado do trabalho analítico e associativo; ao invés de associar, pode encontrar-se em puro momento introspectivo, regredido a algum período de sua vida, recordando alguma experiência que lhe foi importante, escapando da regra fundamental da análise.

Para Balint o paciente silencioso traz um problema para o manejo da técnica. A atitude habitual na análise é considerar o silêncio como sinônimo de resistência do paciente ao processo analítico e suas dificuldades em trazer à luz o material inconsciente originados no seu passado e na sua história de vida. Até certo ponto, há indivíduos que vivenciam momentos de silêncio na análise como uma resistência e como problema transferenciais. No entanto, podemos supor que algo a mais acontece – o paciente silencioso também pode estar pensando ou recordando seu passado e sua história de vida, pode estar associando, pode estar elaborando ou ainda regredindo a um período de sua vida em que se sinta seguro.

A mudança de abordagem com relação ao silêncio e o manejo da técnica podem levar a considerar o silêncio mais como algo positivo que pode ser vivenciado no setting e menos como sintoma de resistência. O silêncio pode ainda ser considerado como fonte de informação acerca das primeiras experiências vividas pelo analisando em sua relação com o seu primeiro objeto de amor ou ódio. Pode falar até mesmo da criança que vive dentro do paciente cujas experiências não podem ser expressas sob forma de palavras. Mais do que isso, o silêncio vivido no setting analítico pode ser uma boa forma de entender a experiência de pensamento do paciente no decurso do processo analítico.
 


Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

Comunicação e não-comunicação na psicanálise


A clínica psicanalítica se definiu pela relação estreita com a linguagem. Não foi a toa que a psicanálise foi definida como uma “talking cure” – a cura pela fala, desde que Freud e Breuer deram voz as suas pacientes histéricas. Era uma linguagem enigmática que poderia tanto seduzir como fascinar ou atemorizar aqueles que dela tentavam dar conta. Mas para que essa linguagem precisasse fazer sentido, era preciso que, ao contrário de Breuer que fechou os ouvidos ao que essas pacientes lhes diziam, Freud desse sentido e significado para os poderes terapêuticos da palavra. Inaugurava-se, assim, o imperativo de dizer tudo!

Com o desenvolvimento da psicanálise, os poderes da verbalização passaram a ser questionados desde que Winnicott descobriu o inconsciente não-verbalizável e constituiu em torno dele sua teoria das psicoses e da sua prática clínica.

Winnicott, como se sabe, não contestou o inconsciente freudiano recalcado, mas sustentou que esse inconsciente não explicaria o surgimento de doenças psíquicas graves, tais como a psicose. Ele (o inconsciente) não determina nem a sexualidade humana nem o destino da pessoa humana e não é o referente último para entender a vida e a criatividade cultural. Portanto, com Winnicott, a psicanálise muda o foco, não mais centrada na sexualidade recalcada ou em seus derivados, mas passa a buscar no inconsciente não-dizível, não verbalizável os referentes últimos da subjetividade humana, postulando assim uma teoria da comunicação e da não-comunicação.

O estudo da comunicação e da não-comunicação aparece no centro da teoria psicanalítica winnicottiana. Não obstante, outros autores da escola inglesa de psicanálise, já haviam referido sua importância no setting enfatizando as diferenças de manejo da técnica quando um paciente silencioso se fazia presente.

Haveria, então, a possibilidade de se constituir uma comunicação intersubjetiva entre o analista e o analisando, semelhante àquela vivenciada por este na relação mãe-bebê.

Essa comunicação intersubjetiva se dá a partir do momento em que o bebê nasce e se prolonga pela fase oral. Lembremos que a primeira manifestação de amor entre o bebê e sua mãe é denominada por Winnicott como um “amor-boca”, que se dá a partir da alimentação e onde se realiza uma comunicação entre ambos. Esta comunicação pode acompanhar ou não a alimentação, sendo possível observar isso quando vemos a relação entre esse par aí constituído. Na amamentação, por exemplo, é possível que ao mesmo tempo em que se sustenta o bebê para amamenta-lo se estabeleça uma relação de comunicação a partir do rosto da mãe e do bebê. O bebê pode se ver e se enxergar nos olhos da sua mãe que por sua vez o observa. É a face estética do self cuja comunicação se dá por espelhamento ou imagem especular.

No entanto, embora todos os bebês sejam alimentados, não há comunicação nesse instante se não houver uma comunicação e uma alimentação mútua entre o bebê e sua mãe. A mãe que alimenta é ao mesmo tempo alimentada por ele e às vezes essa experiência de mutualidade é referida quando o infante põe o seu dedo na boca da mãe.

Desta maneira é que podemos verificar a experiência de mutualidade e o início de uma comunicação intersubjetiva entre duas pessoas. Conforme diz Winnicott: “uma conquista que depende dos seus processos herdados que conduzem para o crescimento emocional e, de modo semelhante, depende da mãe e de sua atitude e capacidade de tornar real aquilo que o bebê está pronto para alcançar, descobrir, criar”.

O certo é que essa experiência de mutualidade pode se dar de diferentes maneiras, visto que a mãe um dia já foi um bebê e já foi cuidada pela sua mãe. Logo, ela pode já ter passado pela mesma experiência e ter registrado o sentimento que uma vez lhe foi dedicado quando ainda era um bebê. O bebê por sua vez, através da experiência de mutualidade, tem a capacidade de se desenvolver e se identificar projetivamente com sua mãe, sabendo-se que esta é a responsável por se adaptar às suas necessidades.

Contudo, é a partir dessa experiência de mutualidade que podemos enfatizar a comunicação entre o bebê e sua mãe. Com isso queremos afirmar e reforçar, junto com Winnicott, que esta experiência de comunicação está subsumida em termos de anatomia e fisiologia de corpos vivos e ligados, seja através de sons, imagens, cores, cheiros, batimentos cardíacos, movimentos de respiração, trocas de carinho e afeto, tato - através do calor dos corpos da mãe (seio) e seu bebê (boca), e de movimentos diversos que indiquem que a mãe precisa sustentar (holds) seu filho e que este perceba esta sustentação (holding) pela sua mãe.

Dá-se uma comunicação ou intercomunicação entre ambos levando a uma interação muito primitiva e fundamental para o desenvolvimento emocional de todo o indivíduo. São comunicações nas quais a comunicação verbal está fora de ordem, aliás, pode até mesmo estar suspensa – são nada mais do que comunicações silenciosas muito iniciais na relação deste novo par constituído pela mãe e seu bebê. É uma experiência à dois onde deve-se prestar atenção ao cuidado endereçado ao bebê e este, à sua mãe.

Para Winnicott, a comunicação silenciosa é uma “comunicação de confiabilidade que, na realidade, protege o bebê quanto a reações automáticas (itálicos do autor) às intrusões da realidade externa, com estas reações rompendo a linha de vida do bebê e constituindo traumas”. Esta comunicação pode ser tanto de silente quanto traumática. Quando silente, inspira a confiabilidade tomada como certa, quando traumática, produz a experiência de ansiedade – as falhas ambientais das quais evocamos.

Em suma, a comunicação silenciosa envolve a relação dual entre a mãe e seu bebê em termos físicos (gestos, ritmos, cheiros, tessituras, etc), dos quais, segundo Winnicott, a linguagem é a mutualidade na experiência e da intersubjetividade (encontro entre dois inconscientes).


 
Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

sábado, 8 de outubro de 2011

Retraimento e Regressão em Winnicott



A psicanálise clássica nunca concedeu grande importância ao fenômeno do retraimento e da regressão. É nos textos pré-psicanalíticos dos estudos sobre a histeria que a regressão faz sua primeira aparição através dos trabalhos de Freud e Breuer.

No entanto, é a partir das contribuições dos analistas da Escola Inglesa e das relações de objeto, sobretudo a partir dos escritos de Winnicott que será ressaltado a diferenciação entre regressão (regression) e retraimento (withdrawal).

Para Winnicott, clinicamente, os dois estados são praticamente indiferenciados, porém, na regressão há o fenômeno da dependência, enquanto que no retraimento ocorre uma independência patológica. O retraimento pode ser permitido na primeira parte de uma análise, fazendo-se presente através de um processo silencioso, uma dependência extrema ou através da percepção de um ambiente persecutório.

Se para o autor o retraimento significa um desligamento momentâneo de uma relação desperta com a realidade externa, desligamento este que pode se manifestar através de momentos de silêncio ou de um breve sono, a regressão significa regressão à dependência, e não, ao contrário do que postulou Freud, regressão em termos de zonas erógenas ou libidinais.

Winnicott de igual modo ressalta a importância do manejo da regressão da dependência absoluta para a dependência relativa e em seguida, para a independência. Quando se diz que um bebê é absolutamente dependente quer dizer da importância da provisão ambiental no desenvolvimento desse bebê.

A dependência absoluta ou quase absoluta, diz Winnicott refere-se a um estado em que o bebê ainda não conseguiu distinguir entre o “eu” e o “não-eu”, ou seja, o objeto subjetivo não é objetivamente percebido, ele ainda é da onipotência criativa do bebê. O bebê alcança o estágio seguinte a partir do comportamento adaptativo que este desenvolve com sua mãe ou substituto materno. Este comportamento adaptativo da mãe torna possível que o bebê encontre aquilo que é esperado e necessário fora do self a partir da maternagem suficientemente boa, ou seja, a partir desta maternagem ele passa para a percepção objetiva.

O paciente que se encontra retraído está fornecendo um holding (sustentação) para o self. Se o analista consegue de igual modo fornecer um holding para o paciente assim que o estado retraído surge na análise, então o estado retraído pode vir a torna-se uma regressão. A vantagem de uma regressão é que ela traz consigo a oportunidade de correção de uma adaptação às necessidades inadequadas presente na história passada do paciente, isto é, a possibilidade de corrigir falhas ambientais através do manejo da técnica – na verdade, postula-se um acolhimento da demanda do paciente como se ele fosse um bebê.

O retraimento, para Winnicott, representa ainda um comportamento autoprotetor, mas o retorno ao retraimento não traz alivio e pode levar a complicações durante o processo analítico. A regressão, por outro lado, tem uma qualidade curativa, pois é possível reformular experiências precoces através da regressão. O retorno da regressão depende da reconquista da independência se for bem trabalhado pelo analista, abrindo-se a possibilidade do self verdadeiro surgir em sua dimensionalidade. Para que se alcance isto, é preciso tanto o desenvolvimento da capacidade de confiar, por parte do analisando, quanto da capacidade de fazer jus à confiança, por parte do analista. É bem provável que o desenvolvimento dessas capacidades levem algum tempo para se realizar, o que significa que o analista está se colocando no lugar de mãe-suficientemente-boa para o paciente, adaptando-se às suas necessidades.

Por outro lado, a regressão caminha do lado oposto ao retraimento. Winnicott afirma que a palavra regressão significa simplesmente o inverso de progresso. Este progresso refere-se à evolução do indivíduo, à sua psique-soma, à sua personalidade ou à sua mente, com uma formação de caráter e socialização. O progresso por ele referido tem início em uma data certamente anterior ao nascimento do infante, mas existe também um impulso biológico por trás deste progresso.

Por fim, Winnicott considera ainda que haja dois tipos de regressão: a primeira refere-se a uma retroação em uma direção ao que constitui o oposto do movimento para a frente do desenvolvimento, no qual aspectos regressivos aparecem e possibilita reconhecermos o bloqueio nos mecanismos de crescimento do indivíduo. O segundo tipo refere aquilo que o autor denominou de “regressão à dependência” a partir de uma provisão ambiental, conforme dito anteriormente.

Os pacientes que regridem à fase de dependência, não necessariamente são denominados de pacientes regredidos. Os pacientes regredidos foram descritos por Winnicott de “pacientes borderlines”, que na literatura psicanalítica atual tem sido denominado de “casos limites”. Nestes pacientes, o que se pode observar é o surgimento de uma “psicose de transferência”. Tanto no retraimento quanto na regressão, é necessário o manejo da “regressão à dependência”. A regressão à dependência é uma condição necessária para reparar falhas ambientais e promover o verdadeiro self, encoberto defensivamente pelo falso self. Mais do que isso: a regressão à dependência é um processo de cura originado no verdadeiro self do analisando. 

Mas quais seriam então as características da regressão? Seguindo o pensamento de Winnicott, estas seriam de quatro ordens: a primeira, um fracasso de adaptação por parte do meio ambiente resultando em um falso self; uma crença na possibilidade de correção do fracasso original, representada pela capacidade de uma regressão e implicando numa organização do ego; uma provisão ambiental especializada e posterior regressão e, por fim, um novo desenvolvimento emocional regressivo.

Para o autor, uma regressão na psicanálise quer dizer a existência de uma organização do ego e uma ameaça de caos, necessitando, portanto de uma investigação da organização das memórias de um indivíduo, suas ideias e potencialidades, observando a existência de condições para o desenvolvimento emocional que se tornou impossível pelo fracasso ambiental. 

Quando o autor trata de fracasso ambiental, o que na verdade quer enfatizar são as defesas pessoais organizadas pelo indivíduo necessitando, portanto, a necessidade de um processo analítico para restituir o verdadeiro self do indivíduo, encoberto pelo falso self zelador. Reviver esse período da infância é uma característica da regressão.

Neste sentido, espera-se que a regressão leve-o à fase de dependência para que sejam restituídas as condições ambientais favoráveis para o desenvolvimento de um self saudável.

Uma vez o paciente encontrando-se em estado regredido por um determinado período de tempo, a tarefa do analista é tentar reviver no setting as falhas ambientais, reparando-as, ou seja, sustentando todo o setting como o ambiente no qual foi vivido as falhas ambientais. Logo, o divã pode se constituir tanto como o analista quanto o ambiente em que se viveu aquelas falhas; as almofadas podem ser compreendidas como sendo os seios maternos ou ainda o analista se colocar no lugar de mãe-suficientemente-boa.





Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

domingo, 11 de setembro de 2011


WINNICOTT: VIDA E OBRA


Vídeo apresentando a vida e a obra de Donald W. Winnicott, psicanalista pertencente à Escola Inglesa de Psicanálise.
Local: Instituto de Estudos da Complexidade
Período: de 10 de setembro a 26 de novembro de 2011
Informações: www.iecomplex.com.br/eventos

terça-feira, 26 de julho de 2011

A contingência da solidariedade: Rorty & Bauman




Segundo Lynn Hunt, autora de “A invenção dos Direitos Humanos”, a igualdade é uma ideia relativamente nova na história da humanidade. Ela nasceu juntamente com os ideais revolucionários da burguesia francesa que trouxe como consequência a “invenção dos direitos humanos”. De acordo com a autora, o surgimento do regime capitalista no século XVIII criou novas exigências econômicas e políticas, assinalando que a ideia de igualdade não era nem solução nem conclusão para um novo modo de estilo de vida, pois na medida em que os cidadãos abandonaram o horizonte de uma “vida tradicional” e se tornaram capazes de enxergar e a sofrer com a dor e a humilhação do seu semelhante, foi necessário um movimento para que essas desigualdades não fossem recrudescidas. É justamente nesse mesmo momento histórico que a solidariedade entra em cena, malgrado o seu esquecimento por parte dos defensores dos Direitos Humanos.

Da Revolução Francesa até os dias de hoje, muito se tem escrito acerca dos ideais humanitários na defesa e primazia dos Direitos Humanos, mas pouco se tem escrito sobre a sua relação com o sentido de solidariedade.

Não obstante, vários são os autores que se debruçaram sobre este tema.

Para o filósofo Richard Rorty, o sentimento de solidariedade depende necessariamente das semelhanças e das diferenças que surgem em função de um vocabulário de um determinado grupo, ou seja, o que Rorty entende por desejo de solidariedade não está única e exclusivamente na concepção mais banal do amor ao próximo, nos modelos propostos pela “caritas cristã” ou nos ideários humanistas propostos por Rousseau mas, sobretudo, no reconhecimento da ideia de pertencimento a determinado grupo ou comunidade de tradição à qual estaríamos atados por vocabulários, crenças e laços de linguagem”.


Através dos atos de linguagem, seríamos capazes de inventar diversos modelos de convivência com o outro através daquilo que Rorty define como “jogos de linguagem”, fazendo uso da expressão de Wittgenstein. A linguagem, assim concebida, possibilita uma vida em contingência. Viver em contingência para Rorty significa a possibilidade de gerenciar nossa própria vida de modo a produzir novas formas para nos definir e definir o sujeito que me é próximo, através de vocabulários que podem ou não prescrever a marca hegemônica do preconceito, daí o reconhecimento que pertenceríamos a determinados grupos ou comunidades de tradição.

Quanto maior o sentimento de solidariedade humana, segundo Rorty, maior a possibilidade de alcançarmos um progresso moral, de modo a admitir a dor e a humilhação do Outro, propondo a inclusão do “diferente” no nosso grupo social, aumentando os nossos acordos intersubjetivos e a referência do nós.


Ao retomar o pensamento de Rorty, Zigmunt Bauman afirma que a linguagem da necessidade, da certeza e da verdade absoluta não pode senão formular a humilhação do outro, do diferente, daquele que não satisfaz os padrões ora então vigentes. Neste caso, para o autor, a contingência da linguagem pode criar a possibilidade de ser gentil e evitar a humilhação dos outros, favorecendo, assim, uma cultura da tolerância. Ser gentil e tolerante são símbolos do comportamento e da linguagem humana, predispondo os homens à construção da solidariedade.

Neste sentido a solidariedade seria uma chance dada à tolerância construída na pós-modernidade, que por sua vez, é uma chance da modernidade. A solidariedade, para Bauman, é uma chance em terceiro grau. Isto significa que “a solidariedade não pode derivar sua confiança de nada sequer remotamente sólido e, portanto, confortador como as estruturas sociais, as leis da história ou o destino das nações e raças, de que os projetos modernos extraíram seu otimismo, autoconfiança e determinação”, afirma Bauman em seu livro “Modernidade e Ambivalência”.

Como resultado do medo e sob a perspectiva de “ser gentil”, a única saída possível, segundo Bauman, seria evitar a humilhação do outro, considerá-lo no que ele tem de mais de singular e específico, respeitar as suas diferenças para considerá-lo na sua alteridade. Ser diferente, então, resignaria o nosso dever para com o outro, e deveria nos forçar a respeitá-lo para que possamos conviver em harmonia. Seria este o sentido dado por Rorty no seu desejo de solidariedade, ou seja, o respeito pelas nossas diferenças, para que evitássemos a dor e a humilhação do outro. 

Poderíamos pensar, então, que para Bauman, a solidariedade seria uma forma de agrupamento de sujeitos livres que compartilham de “sentimentos” e “ações” coletivas unidos através de um sentimento de pertencimento coletivo e não através de uma política identitária, isto porque uma política identitária e a reivindicação de direitos, tais como a política de cotas para negros, o movimento de cidadania de gays e lésbicas que batalham pelo direito à união civil, ou até mesmo o movimento feminista, não nos dão o sentido exato de um agrupamento de sujeitos e de indivíduos compartilhando uma mesma comunidade, pelo contrário, ele particulariza e individualiza os sujeitos de um dado grupo.

Um agrupamento de sujeitos livres em uma mesma comunidade, apesar de poder ser compreendido como um horizonte de ideais possíveis, mas sem serem utópicos, significa reconhecer as diferenças desses grupos e considerá-los naquilo que os particularizam enquanto grupo, ou dito de outro modo, reconhecimento de sua cidadania e reconhecimento enquanto sujeitos de direito.

Aqui entra em questão uma outra ideia defendida por Bauman, qual seja, a ideia de liberdade. Só uma sociedade livre pode propor que as diferenças hierárquicas não imponham um sentido de valor entre os hierarquizados, muito embora, este valor por si mesmo já esteja implícito na ideia de hierarquia social tornando as sociedades contemporâneas tão segmentárias, transformando os indivíduos que fazem parte dela em dois novos grupos: “os incluídos” e os “excluídos”. 

Mas como Bauman nos lembra, o indivíduo livre, longe de ser uma condição universal da humanidade, é uma criação histórica e social, e como tal, a liberdade do indivíduo não pode ser encarada unicamente como uma physis, no sentido grego da palavra, tal como nos lembra Hannah Arendt quando se refere à igualdade. Pelo contrário: ela deve ser entendida como uma qualidade inerente a todo o ser humano, ou melhor, uma condição universalmente humana das sociedades modernas e capitalistas. Mais do que isso: a liberdade deve ser uma condição necessária à integração social, que mantém os indivíduos unidos, reconhecendo-os como um grupo humano que compartilha dos mesmos direitos e deveres, sonhos, desejos, crenças, valores, oportunidades, entre outros.

Quando ampliamos o sentido de “reconhecimento” entre os humanos, aumentamos a nossa tolerância, ampliamos a quantidade e a qualidade de horizontes possíveis passando então, a construir um outro sentido, qual seja, o sentido de tolerância mútua na qual afirma “se eu te tolero, tu me toleras e me reconheces na minha singularidade”. 

Isto posto, para os problemas relacionados à queixa do diferente e para o sentido de intolerância com determinadas comunidades e grupos, Bauman responde com o “sentimento de tolerância mútua”, no reconhecimento e aceitação das nossas diferenças para alcançarmos um ideal de igualdade: um ideal possível, talvez, fosse o ideal de humanidade que nos manteria unidos através de um destino comum cuja humanidade precisa aprender a valorizar: a solidariedade humana. 

Para Bauman, é pelo direito do Outro que o meu direito se impõe, e neste caso, ser responsável pelo Outro também significa ser um pouco responsável por si mesmo. Neste sentido, para o autor, a solidariedade do contingente está baseada no silêncio, ou seja, ao procurar evitar fazer certas perguntas e buscar certas perguntas, ela se satisfaz na sua própria contingência, recebendo a sua devida importância quando a linguagem do isolamento, da discriminação e da humilhação sai de uso. 

Portanto, para alcançarmos uma sociedade liberal ideal, deveríamos aprender a construir novos laços discursivos, fazendo da solidariedade um “desejo de solidariedade” no qual reconheceríamos nos outros, um pouco (senão muito) de nós mesmos, aprendendo a ser tolerante com este Outro que nos é familiar, que nos parece semelhante.

Preferir a solidariedade é preferir julgamentos éticos juntamente com a ideia de contingência de nossas crenças, lembrando sempre que somos organismos humanos que um dia criaram a ideia de que existe um sujeito moral que delibera, age e é responsável por suas ações. Nenhuma outra imagem nos pareceu mais feliz e bem sucedida para preservar os valores que tanto necessitamos para manter o nosso ideal de solidariedade e humanidade, ou nas palavras de Rorty, uma sociedade liberal ideal.

Para alcançar a sociedade liberal ideal, na qual a solidariedade para com quem nos é próximo seja uma verdade universal, é preciso quebrar a dicotomia imperativa diferença/igualdade, tolerância/intolerância de modo a não fomentarmos o desrespeito, a humilhação, o preconceito e muito menos a violência para com este Outro.

É na compreensão de um ser humano como um “ser solidário”, ou seja, é na compreensão de que o sofrimento e a dor que eu infrinjo ao outro podem ser a minha dor, ou ainda é na compreensão do outro como sendo “um de nós” que eu posso me colocar na posição de quem sofre para descrever a crueldade como aquilo que de pior podemos fazer a um ser humano e, portanto, posso imaginar um mundo possível de ideais, um mundo construído a partir de uma comunidade solidária e livre, enfim, uma sociedade liberal ideal, nos moldes como propõe o filósofo Richard Rorty.






Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Imagem e esquema corporal



A expressãoimagem do corpo” é usada mais frequentemente para fazer referência à aparência física sobre os distúrbios de comportamentos alimentares ou a deficiência física. Ela pertence ao mesmo tempo à linguagem da neurologia, da psiquiatria e da psicanálise e adquiri significados diferentes segundo a época, a disciplina ou os pressupostos teóricos dos diversos especialistas que a empregaram ou a empregam.
Para Paul Schilder a imagem corporal é uma “figuração de nosso corpo formada em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós” cuja representação é dada através de várias sensações advindas da superfície do corpo, dos músculos, das vísceras, etc. Por outro lado, ele define esquema corporal conforme a percepção da postura do corpo, ou seja, uma imagem tridimensional que todos nós temos de nós mesmos. Toda a construção da imagem e do esquema corporal, para Schilder, está baseada na percepção do corpo como uma unidade. Ele, portanto, faz uso dos termos como se fossem sinônimos.
Em um determinado momento, Schilder chega a afirmar que a imagem corporal pode se encolher ou se expandir, e como tal, podemos anexar objetos externos à imagem do nosso corpo. “Quando tocamos um objeto com a extremidade de uma vareta, a sensação é percebida na ponta da vareta. Esta se torna, realmente, parte da imagem corporal”. Até mesmo uma peça de roupa, pode mudar a imagem que temos do nosso corpo! Schilder, portanto, confunde imagem com esquema corporal ao afirmar que a imagem do corpo pode incorporar objetos. Mas uma coisa é a construção da imagem do corpo em nossas mentes, outra é como os objetos externos são incorporados como umacessório” ao nosso corpo para que ele faça parte de nosso esquema corporal, tal qual um objeto externo a ele.
Apesar de seus estudos se darem no âmbito das lesões neurológicas, Schilder não avança na discussão quando deixa de abordar a questão pela via do mental versus físico a exemplo de outros autores.
Para a fenomenologia, o corpo é um objeto intencional e consciente, logo, a imagem do corpo é uma imagem ou representação consciente, abstrata e desintegrada que se diferencia do resto do ambiente. Por outro lado, o esquema corporal é definido como um conjunto de sensações proprioceptivas que fornecem ao organismo sua posição gravitacional no ambiente e não apenas o seu modelo postural, no qual, através dos órgãos dos sentidos, o corpo estaria apto a agir e reagir aos estímulos do ambiente.
O primeiro necessita de um fato mental com intencionalidade - pois está sempre se referindo a um outro que lhe é exterior; de uma privacidade - pois é constantemente solicitada a representar à sua própria existência e o seu próprioeu”; por fim, necessita de uma representacionalidade – que pressupõe um mínimo de competência lingüística do sujeito, ou dito de outro modo, a imagem do corpo é linguisticamente organizada de modo reflexivo ou pré-reflexivo, consciente ou inconsciente, afirma o psicanalisa Jurandir Freire Costa.
O esquema corporal, por outro lado, nem é uma compreensão perceptiva, nem cognitiva, nem emocional, ele se distingue da imagem do corpo, pois ele é uma performance inconsciente sem uma intencionalidade. Nessa performance, o corpo adquire uma organização ou estilo em relação ao ambiente podendo incorporar objetos externos a ele. O esquema corporal é a forma como o corpo experiencia o ambiente em que se encontra. Ele envolve um conjunto de capacidades motoras, habilidades e hábitos que capacita os movimentos e a postura do corpo no eixo gravitacional, e como tal é um sistema de funções motora e postural que opera em um nível inferior da intencionalidade auto-referente, muito embora essas funções possam ter uma atividade intencional.
Para experienciar o mundo, o corpo precisa agir, e para que o corpo possa agir no mundo ele necessita de uma intencionalidade e um mínimo de competência linguística para poder se representar nesse mundo.
Vários são os exemplos que podemos usar para ilustrar esse fato. O mais comum refere-se à vareta que um deficiente visual usa para caminhar – o seu corpo não se resume apenas a seus membros, mas prolonga-se até a última ponta da vareta que ele usa para construir mentalmente o caminho a percorrer. Do mesmo modo, o corpo do piloto de um avião não se resume à sua matéria corporal, mas sim a toda aeronave que ele pilota. Por extensão, um exímio digitador ou pianista tem a ponta de seus dedos prolongados pelo teclado ou do computador ou do piano, praticamente incorporando esses objetos ao seu esquema corporal. É ao esquema corporal que podemos anexar objetos externos ao nosso corpo e não à nossa imagem corporal.
Esquema e imagem corporal, portanto, são formas fenomênicas do corpo experienciar o mundo que o cerca e participam da constituição subjetiva do nosso eu (self), através de uma ação sobre o mundo (intencionalidade) e de uma competência linguística (descrições narrativas de si). Com o aporte fenomenológico, unido ao conhecimento neurológico, podemos entender melhor determinados distúrbios da identidade pessoal e da imagem corporal.
A possibilidade de usamos as ferramentas do conhecimento neurológico e da fenomenologia da percepção, tais como descrevemos acima, aliado ao nosso conhecimento das teorias da subjetividade e das descrições narrativas de si, seja um caminho que se abre notadamente para o tratamento de pacientes com distúrbios neurológicos ou com distúrbios de imagem corporal.



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

O silêncio para Lacan, Dolto e Aulagnier

Representado eminentemente a partir das contribuições de Jacques Lacan, o silêncio vai ser compreendido sobre dois eixos teóricos, a palavra plena e a palavra vazia e o binômio silere e tacere. Além de Lacan, pretende-se enfatizar também as contribuições de Piera Aulagnier e a questão do segredo na psicanálise, e Françoise Dolto e o silêncio como resposta da solidão.
Para Lacan, a palavra é plena na medida em que realiza a verdade do sujeito; em oposição, a palavra é vazia em relação àquilo que tem de fazer no aqui e agora com seu analista, em que o sujeito se perde nas maquinações do sistema de linguagem a que está subsumido, no labirinto dos sistemas de referência que lhe dá o estado cultural do qual faz parte, em suma, é através desses dois paradoxos que, segundo afirma Lacan, dá-se uma série de desdobramentos de realização da palavra. Mas insiste: é na medida em que a palavra é a mais plena no discurso do sujeito que o analista pode mais intervir. Do contrário, quanto mais o discurso é vazio, o analista tende a buscar algo para além do seu discurso, além daquilo que o sujeito tem a realizar, mas ainda não realizou.
Quanto ao segundo eixo teórico, Lacan proporá o paradoxo do silêncio original ao silêncio produzido pela situação do calar-se: sileo e taceo.
De acordo com Jacques-Alain Miller Silet em latim é a terceira pessoa do presente do indicativo do verbo “silere”, que pode ser traduzido como a atividade de “permanecer em silêncio”, no sentido de um verbo ativo. Para ele, quando se diz “calar-se”, imaginamos que alguém nos faz calar, porém, trata-se de uma atividade de guardar silêncio. Por conseguinte, “taceo” seria o silêncio da palavra não-dita, o calar-se, o silenciar-se ou ser silenciado. Sileo é um silêncio fundante, estruturante e sugestivo da ausência essencial da palavra, ou dito de outro modo, o buraco, o vazio da significação. Segundo Lacan, “sileo não é taceo. O ato de calar-se não libera o sujeito da linguagem apesar de que a essência do sujeito culmine nesse ato; se exerce a sombra de sua liberdade, o calar-se permanece carregado de um enigma por ter passado tanto tempo na presença do mundo animal ”.
Com isso, Lacan postula que haveria, entre tantos, dois tipos de silêncio: um silêncio que é, em sua forma original, o nada a dizer, o calar-se, ressaltando que a palavra guarda em si mesma o vazio do silêncio. O sileo é o nada dizer, é permanecer de boca fechada ressaltando os poderes e o valor da palavra diante de um discurso que não se apresenta. O analista põe-se sempre a falar do silêncio do seu analisando posto que, quando fala, fala ou deveria falar a partir do silêncio daquele. Há, portanto, afinidades diante do silêncio e do gozo, satisfação dita inconsciente, satisfação esta da qual não se sabe absolutamente nada. Aqui há uma condição fundante do sujeito, a do “fala-a-ser”. Existe, porém, de acordo com Jacques-Alain Miller, o gozo de não falar, o taceo. Se um discurso dirigido a um Outro que permanece em silêncio, encontra a si mesmo, então a experiência do calar-se, do taceo, diz de uma outra condição, qual seja, a de um “falta-a-ser”.
Para Françoise Dolto o silêncio está muito próximo do sentimento de solidão. Para a autora, a solidão é o lugar da comunhão e da construção inacabada e frágil da vida – logo, suscita o desejo de comunhão com o transcendente e da própria vida interior. Na tradição cristã, há a consciência que o discurso sobre a Trindade nos obriga a trocar as palavras por balbucios, ou seja, para a metapsicóloga, o esquema trinitário está próximo da experiência que todo o sujeito faz na organização do seu mundo interior, na maturação de si. Diz a autora: “Acho maravilhoso encontrar em Deus a Trindade, essa relação de amor a três. É algo que encontramos justamente no desejo de viver de cada um de nós. Assumimos aí o nosso papel no interior de uma situação triangular: pai, mãe, filho. […] O facto de remontar à Trindade, ou seja, aos três desejos divinos circulantes, é extraordinário, pois foi assim que fomos concebidos”. Mas não só. Todos os “segundos nascimentos”, sempre que a vida nos impele a um recomeço, seja a partir de feridas e perdas, seja a partir de encontros e esperanças, o “esquema trinitário” nos torna imprescindível. “A nossa solidão só pode ser curada quando expressa criativamente e quando ajudada por alguma outra pessoa, que cria assim uma situação triangular. Somos dois, conversamos: o terceiro é a palavra. A palavra, que vem sempre  de outro, prova que somos três”.
Por fim, para Pierra Aulagnier o silêncio ora se coaduna com pensadores da Escola Inglesa ora com pensadores da Escola Francesa, mais especificamente da escola lacaniana de psicanálise.
Em seu texto “Direito ao Segredo – condição para poder pensar”, a autora propõe um novo paradigma, qual seja, a de que o imperativo de dizer tudo numa análise possa também se sustentar pelo direito ao silêncio, ao calar-se (ticeo) e, portanto, guardar segredo.  Para ela, pensar secretamente não precisa ser necessariamente interpretado. O direito a guardar segredo em silêncio, na verdade, é uma aquisição mais elaborada do EU (ego), e é uma condição para que se possa pensar, elaborar, fantasiar, criar, ou seja, uma dimensão elaborada da interioridade e, porque não dizer, do próprio inconsciente. Para Aulagnier “perceber que a singularidade da experiência e da relação analítica não está tanto, como se acreditava, no fato de dever exprimir pensamentos, afetos, que nos dizem respeito e de não receber nenhuma resposta, mas sim nessa estranha injunção interiorizada que obriga ao analisando a falar como se estivesse privado de todo direito de escolha sobre o dito e o não dito”. Dito de outro modo, a autora sustenta a autonomia de que guardar segredo e permanecer em silêncio é, antes de tudo, uma aquisição do próprio EU necessário ao próprio aparelho psíquico, o que a aproxima, por um lado da “capacidade de estar só” em Winnicott, mas também da dicotomia lacaniana entre o sileo e o taceo.



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.